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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Natal


O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.


- in CANCIONEIRO
Fernando Pessoa

VOTOS DE UM FELIZ NATAL PARA TODOS OS QUE ME VISITAM

sábado, 17 de novembro de 2012

A velhice pede desculpa


Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles, in 'Poemas (1958)'

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A pressa febril da vida moderna


A lentidão da nossa vida é tão grande que não nos consideramos velhos aos quarenta anos. A velocidade dos veículos retirou a velocidade às nossas almas. Vivemos muito devagar e é por isso que nos aborrecemos tão facilmente. A vida tornou-se para nós uma zona rural. Não trabalhamos o suficiente e fingimos trabalhar demasiado. Movemo-nos muito rapidamente de um ponto onde nada se faz para outro onde não há nada que fazer, e chamamos a isto a pressa febril da vida moderna. Não é a febre da pressa, mas sim a pressa da febre. A vida moderna é um lazer agitado, uma fuga ao movimento ordenado por meio da agitação.

Fernando Pessoa, in 'Heróstato'
Foto: da Net

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Flor da liberdade




Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós... também nós... e o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
a sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
ou debaixo da terra.
Liberdade!

O não inconformado que se diz
a Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos, insepultos,
vivos amortalhados,
passados e presentes cidadãos:

temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!

E é essa flor que nunca desespera
no jardim da perpétua primavera.

Miguel Torga,
in "Orfeu Rebelde", 1958

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Para o meu filho, que é um presente que Deus me deu


És o filho, que todas as mães gostariam de ter, sinto muito orgulho em ti.


Caminhante, são os teus passos
o caminho e nada mais;
Caminhante, não há caminho,
O caminho faz-se a andar.
A andar faz-se o caminho,
e ao voltar a vista atrás
vê-se a senda que nunca
se há-de voltar a pisar.
Caminhante não há caminho
só sulcos no mar.

Antonio Machado (1875-1939)
"Proverbios y cantares XXIX" in Campos de Castilla

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Bóiam farrapos de sombra


Bóiam farrapos de sombra
em torno ao que não sei ser.
É todo um céu que se escombra
sem me o deixar entrever.

O mistério das alturas
desfaz-se em ritmos sem forma
nas desregradas negruras
com que o ar se treva torna.

Mas em tudo isto, que faz
o universo um ser desfeito,
guardei, como a minha paz,
a 'sp'rança, que a dor me traz,
apertada contra o peito.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Nós Estamos num Estado Comparável à Grécia



Nós estamos num estado comparável, correlativo à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão.
Eça de Queirós, in 'Farpas (1872)'

Portugal Está a Atravessar a Pior Crise
Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: - mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não - pelo menos o Estado não tem: - e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise me parece a pior - e sem cura.

Eça de Queirós, in 'Correspondência (1891)'

domingo, 9 de setembro de 2012

Há muito que são velhas vestidas de preto até à alma


Há muito que são velhas vestidas
de preto até à alma.

Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.

Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.


Eugénio de Andrade
Foto de Carlos Lopes Franco- Galeria Olhares

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Alentejo


Alentejo

A luz que te ilumina,
terra da cor dos olhos de quem olha!

A paz que se adivinha
na tua solidão
que nenhuma mesquinha condição
pode compreender e povoar!

O mistério da tua imensidão
onde o tempo caminha
sem chegar !...

Miguel Torga
Diário XII, 20 de Outubro de 1974

domingo, 29 de julho de 2012

O meu olhar é nítido como um girassol


O meu olhar é nítido como um girassol
tenho o costume de andar pelas estradas
olhando para direita e para a esquerda,
e de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
é aquilo que nunca antes eu tinha visto,
e eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
que tem uma criança, se ao nascer,
reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
para a eterna novidade do Mundo…

Alberto Caeiro

domingo, 8 de julho de 2012

A minha alma é uma orquestra oculta


A minha alma é uma orquestra oculta;
não sei que instrumentos tangem e rangem,
cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim.
Só me conheço como sinfonia.

Fernando Pessoa

Livro do Desassossego

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Voz Activa



imagem: criação de Jonathan Callan


Canta, poeta, canta!
Violenta o silêncio conformado.

Cega com outra luz a luz do dia.

Desassossega o mundo sossegado.

Ensina a cada alma a sua rebeldia.

Miguel Torga
in "Diário XIII", 1983

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Sol nulo dos dias vãos



Sol nulo dos dias vãos,
cheios de lida e de calma,
aquece ao menos as mãos
a quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe
com externo calor brando
o frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa
e a fraqueza que ela tem,
dá-nos ao menos a força
de a não mostrar a ninguém!
Fernando Pessoa

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão



Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do meu próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
o mistério das palavras maduras
ou a brancura de um amor que nos prendia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até ouvir
o meu sangue jorrar na voz das fontes.
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 18 de maio de 2012

O Silêncio


Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Reza da manhã de maio


Senhor, dai-me a inocência dos animais
para que eu possa beber nesta manhã
a harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã
de humanidade,
apagai a vaidade,
para que eu me perca e me dissolva
na perfeição da manhã
e para que o vento me devolva
a parte de mim que vive
à beira de um jardim que só eu tive.

Sophia de Mello Breyner Andressen - Obra Poética - Dia do Mar

domingo, 6 de maio de 2012

A minha vida é a maior empresa do mundo











Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar algumas vezes irritado,
mas não esqueço que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver,
apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis
no recôndito da tua alma.
É agradecer a Deus em cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um “não”.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho? Guardo-as todas, um dia vou construir um castelo…

Fernando Pessoa

terça-feira, 1 de maio de 2012

terça-feira, 24 de abril de 2012

Já Foste Rico e Forte e Soberano

Já foste rico e forte e soberano, já deste leis a mundos e nações, heróico Portugal, que o gram Camões Cantou, como o não pôde um ser humano! Zombando do furor do mar insano, os teus nautas, em fracos galeões, descobriram longínquas regiões, perdidas na amplidão do vasto oceano. Hoje vejo-te triste e abatido, e quem sabe se choras, ou então, relembras com saudade o tempo ido? Mas a queda fatal não temas, não. Porque o teu povo, outrora tão temido, ainda tem ardor no coração. Saúl Dias, in "Dispersos (Primeiros Poemas)"

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Uma sociedade pacífica de revoltados















"É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.
Somos, socialmente, uma sociedade pacífica de revoltados"
Miguel Torga, Diário (17.09.1961)
Imagem -(Operários de Tarsila do Amaral

domingo, 1 de abril de 2012

Portugal


Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
e torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
e descubro na bruma o meu destino
que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
surdo às razões do tempo e da fortuna,
achar sem nunca achar o que procuro,
exilado na gávea do futuro,
mais alta ainda do que no passado.

Miguel Torga, in 'Diário X'

domingo, 18 de março de 2012

Recomeça






















Recomeça…
se puderes,
sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
nesse caminho duro
do futuro,
dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
vai colhendo
ilusões sucessivas no pomar
e vendo
acordado,
o logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga, Diário XIII

sexta-feira, 2 de março de 2012

A flor
















A Flor

Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

ALMADA NEGREIROS

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A certeza


















Sereno, o parque espera.
Mostra os braços cortados,
E sonha a primavera
Com seus olhos gelados.

É um mundo que há-de vir
Naquela fé dormente;
Um sonho que há-de abrir
Em ninhos e semente.

Basta que um novo sol
Desça do velho céu,
E diga ao rouxinol
Que a vida não morreu.

Miguel Torga

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Um poema















Não tenhas medo, ouve:
É um poema
um misto de oração e de feitiço...
sem qualquer compromisso,
ouve-o atentamente,
de coração lavado.
Poderás decorá-lo
e rezá-lo
ao deitar
ao levantar,
ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
de que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...

Miguel Torga, Diário XIII
Foto de Jacob Lopes 1000imagens