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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Cortar o tempo



Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.

Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez,
com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O sonho é ver as formas invisíveis da distância imprecisa



O sonho é ver as formas invisíveis
da distância imprecisa, e, com sensíveis
movimentos da esperança e da vontade.

Busca na linha do horizonte
a árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte-
os beijos merecidos da verdade.

Horizonte, Mensagem, Fernando Pessoa

Um Feliz Natal

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A morte é algo inevitável



A morte é algo inevitável. Quando um homem fez o que considera ser o seu dever para com o seu povo e o seu país, ele pode descansar em paz. Eu acredito que fiz esse esforço e é por isso que vou descansar por toda a eternidade.

Em entrevista para o documentário "Mandela", 1994 (de: "Nelson Mandela By Himself: The Authorised Book of Quotations")

domingo, 27 de outubro de 2013

Portugal ontem e hoje



Gerês, 16 de Julho de 1977

Em vez de me perder, como outrora, pela serra,a encher os olhos da única realidade que hoje vale a pena em Portugal, a paisagem, passo as horas sentado em frente da rádio e da televisão, na ânsia de uma notícia de esperança. Tal é o meu desespero. Mas vêm palavras. As mais levianas, demagógicas e tolas que se podem ouvir. Os nossos políticos andam ao desafio. Cada qual quer ser mais irresponsável do que o parceiro. E consegue-o sempre.

(Miguel Torga em Diário XIII

domingo, 29 de setembro de 2013

No entardecer da terra



No entardecer da terra
o sopro do longo Outono
amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
como um sonho mau num sono,
na lívida solidão.
soergue as folhas, e pousa
as folhas, e volve, e revolve,
e esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
e o vento lívido volve
e expira na lividez.
Eu já não sou quem era;
o que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
amanhã direi, quem dera
volver a sê-lo! ... Mais frio
o vento vago voltou.


Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)Lisboa: Ática,1942(15ª ed. 1995).
- 91.
1ª publ. in Ilustração Portuguesa , 2ª série, nº 83. Lisboa: 28-1-1922.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Quando já não escrever



Quando já não escrever
não poderei dar a minha mão
nem guardá-la
O mundo já não será o mundo
mas a violência nua
do que já não pode ser transposto
ou deslocado
porque não terá horizonte
nem será um espaço
não saberei dizer adeus
porque não vou partir
[...]

(António Ramos Rosa...
O Deus da incerteza ignorância

sábado, 21 de setembro de 2013

No fim do mundo de tudo



No fim do mundo de tudo
há grandes montes que tem
ainda além para além
um grande além mago e mudo.
São paisagens escondidas
que são o que a alma quer.
Ali ser, ali viver
vale por vidas e vidas.
Todos nós, que aqui cansamos
a alma com a negar,
nesse momento de sonhar
ali somos, ali estamos.
Mas, depois, volvidos onde
há só a vida que há
vemos que ante nós está
só o que vela e que esconde.
Só dormindo os horizontes
se alargam e há a visão
dos montes que ao fundo estão
e o saber do além dos montes


19-5-1934
Mensagem - Poemas esotéricos.
Fernando Pessoa.
(Edição Crítica de José Augusto Seabra.)
Porto: Fund. Eng. A. Almeida, 1993
- 176.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Agora que o silêncio é um mar sem ondas



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
e que nele posso navegar sem rumo.
Não respondas,
às urgentes perguntas que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim
Já tão longe de ti, como de mim.


Perde-se a vida, a deseja-la tanto
Só soubemos sofrer
enquanto o nosso amor
durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

(Súplica - Miguel Torga)

domingo, 1 de setembro de 2013

Quase branco


Caminha devagar:
desse lado o mar sobe ao coração.
Agora entra na casa,
repara no silêncio, é quase branco.
Há muito tempo que ninguém
se demorou a contemplar
os breves instrumentos do verão.
Pelo pátio rasteja ainda
o sol. Canta na sombra
a cal, a voz acidulada.

Eugénio de Andrade in O Peso da Sombra

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Sentir é uma maçada





...não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nela.


Fernando Pessoa
Livro do Desassossego

domingo, 23 de junho de 2013

A clara noite de verão



A clara noite de verão


Com penugem nos sentidos
de leve pousa e afaga, e não
dorme mais

Novos, nos ensinaram a emoção,
crescidos, aprendemos a verdade

Resultou

Débeis de mais para buscar o verdadeiro,
frios de mais para encaixar o sentimento.

Fernando Pessoa
In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005

domingo, 16 de junho de 2013

Poema dum funcionário cansado



A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

António Ramos Rosa

domingo, 19 de maio de 2013

Miradouro


Não sei se vês, como eu vejo,
pacificado,
cair a tarde serena,
sobre o vale,
sobre o rio,
sobre os montes
e sobre a quietação
espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
que o deixe entender.
Vibram na lassidão da claridade.
E o lírico poema que me acontecer
virá toldado de melancolia,
porque daqui a pouco toda a poesia
vai anoitecer.

Miguel Torga
Diário XIV, 5 de Setembro de 1986

domingo, 5 de maio de 2013

Num meio dia de Primavera



Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espirito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E porque toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando agente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É a minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

domingo, 14 de abril de 2013

Nevoeiro



Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer
brilho sem luz e sem arder,
como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece a alma que tem,
nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro
Tudo é disperso, nada é inteiro...
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!

(Fernando Pessoa-A Mensagem)

segunda-feira, 25 de março de 2013

Nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos



As coisas são a matéria para os meus sonhos; por isso aplico uma atenção distraidamente sobreatenta a certos detalhes do exterior.

O que sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente ou ver em sonhos a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual.
Em mim esta atitude, que o muito sonhar enquistou, faz-me ver sempre da realidade a parte que é sonho.
Fernando Pessoa
Livro do Desassossego

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Não tenho pressa


Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
e vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Ando à procura de espaço para o desenho da vida


Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre meu passo,
é distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.

Cecília Meireles

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Porquê tão longe ir pôr o que está perto?


Porquê tão longe ir pôr o que está perto?

Uns, com os olhos postos no passado,
vêem o que não vêem; outros, fitos
os mesmos olhos no futuro, vêem
o que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto —
a segurança nossa?

Este é o dia,esta é a hora, este o momento, isto
é quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora que nos confessa nulos.
No mesmo hausto em que vivemos, morreremos.

Colhe O dia, porque és ele.


28-8-1933
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa

sábado, 12 de janeiro de 2013

Chove. Há Silêncio


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(nem parece de nuvens) que parece
que não é chuva, mas um sussurrar
que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
como uma coisa certa que nos minta,
como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"