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domingo, 29 de setembro de 2013

No entardecer da terra



No entardecer da terra
o sopro do longo Outono
amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
como um sonho mau num sono,
na lívida solidão.
soergue as folhas, e pousa
as folhas, e volve, e revolve,
e esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
e o vento lívido volve
e expira na lividez.
Eu já não sou quem era;
o que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
amanhã direi, quem dera
volver a sê-lo! ... Mais frio
o vento vago voltou.


Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)Lisboa: Ática,1942(15ª ed. 1995).
- 91.
1ª publ. in Ilustração Portuguesa , 2ª série, nº 83. Lisboa: 28-1-1922.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Quando já não escrever



Quando já não escrever
não poderei dar a minha mão
nem guardá-la
O mundo já não será o mundo
mas a violência nua
do que já não pode ser transposto
ou deslocado
porque não terá horizonte
nem será um espaço
não saberei dizer adeus
porque não vou partir
[...]

(António Ramos Rosa...
O Deus da incerteza ignorância

sábado, 21 de setembro de 2013

No fim do mundo de tudo



No fim do mundo de tudo
há grandes montes que tem
ainda além para além
um grande além mago e mudo.
São paisagens escondidas
que são o que a alma quer.
Ali ser, ali viver
vale por vidas e vidas.
Todos nós, que aqui cansamos
a alma com a negar,
nesse momento de sonhar
ali somos, ali estamos.
Mas, depois, volvidos onde
há só a vida que há
vemos que ante nós está
só o que vela e que esconde.
Só dormindo os horizontes
se alargam e há a visão
dos montes que ao fundo estão
e o saber do além dos montes


19-5-1934
Mensagem - Poemas esotéricos.
Fernando Pessoa.
(Edição Crítica de José Augusto Seabra.)
Porto: Fund. Eng. A. Almeida, 1993
- 176.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Agora que o silêncio é um mar sem ondas



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
e que nele posso navegar sem rumo.
Não respondas,
às urgentes perguntas que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim
Já tão longe de ti, como de mim.


Perde-se a vida, a deseja-la tanto
Só soubemos sofrer
enquanto o nosso amor
durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

(Súplica - Miguel Torga)

domingo, 1 de setembro de 2013

Quase branco


Caminha devagar:
desse lado o mar sobe ao coração.
Agora entra na casa,
repara no silêncio, é quase branco.
Há muito tempo que ninguém
se demorou a contemplar
os breves instrumentos do verão.
Pelo pátio rasteja ainda
o sol. Canta na sombra
a cal, a voz acidulada.

Eugénio de Andrade in O Peso da Sombra