Sitemeter

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Natal não é ornamento: é fermento



Foto: Google

"O Natal não é ornamento: é fermento
É um impulso divino que irrompe pelo interior da história
Uma expectativa de semente lançada
Um alvoroço que nos acorda
para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade

O Natal não é ornamento: é fermento
Dentro de nós recria, amplia, expande

O Natal não se confunde com o tráfico sonolento dos símbolos
nem se deixa aprisionar ao consumismo sonoro de ocasião
A simplicidade que nos propõe
não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
não são os da coreografia previsível das convenções

O Natal não é ornamento: é movimento
Teremos sempre de caminhar para o encontrar!
Entre a noite e o dia
Entre a tarefa e o dom
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Entre a palavra e o silêncio que buscamos
Uma estrela nos guiará
O Natal não é ornamento"

José Tolentino de Mendonça

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Entre mim e a vida há um vidro ténue


Foto: Google


"Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar."


Fernando Pessoa - Livro do Desassossego

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A roupa estendida ao vento parece gente a viver


Foto: Google
A roupa estendida ao vento
parece gente a viver
move-se em gestos sem tento
perante o meu pensamento
que não sabe senão ver.

Mas o que fazem no mundo
os homens nos gestos seus
nada é mais firme ou profundo
que este ar nas roupas ao fundo
dos grandes quintais de Deus.

E eu no meu solene estúdio
de como as cousas não são,
no qual compreendo tudo,
vejo o branco agitar mudo
da roupa sem coração.

E lembro, por diferença,
a semelhança que há
entre a agitação intensa
da roupa livre e suspensa
e aquela em que o homem está.

Ao sol e ao vento da vida
livre e preso sob os céus
oscila, coisa movida,
mas é só roupa estendida
nos grandes quintais de Deus.

7 - 12 - 1937

In Poesia 1931-1935 e não datada , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2006

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Quem percorre o Alentejo tem de meditar


Foto Google

“Quem percorre o Alentejo tem de meditar. E ir explicando aos olhos a significação profunda do que vê.”

Miguel Torga

terça-feira, 29 de julho de 2014

Vivemos todos longínquos e anónimos



(Foto: Google)

«Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a constância e quotidianidade da vida.
Saber bem que quem somos não é connosco, que o que pensamos sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos nem porventura alguém o quis — saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações?»

in Livro do Desassossego (fragmento 433)
Fernando Pessoa

sábado, 28 de junho de 2014

O som das ondas à noite


«O som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira-mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção!»

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (fragmento 95

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Compradores de coisas inúteis


(foto Google)

«Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do que se julgam — compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir. Todos os pequenos objectos inúteis cujo acenar ao saberem que têm dinheiro os faz comprá-los, possuem-nos na atitude feliz de uma criança que apanha conchinhas na praia — imagem que mais do que nenhuma dá toda a felicidade possível. Apanha conchas na praia! Nunca há duas iguais para a criança. Adormece com as duas mais bonitas na mão, e quando lhas perdem ou tiram — o crime! roubar-lhe bocados exteriores da alma! arrancar-lhe pedaços de sonho! — chora como um Deus a quem roubassem um universo recém-criado.»

Fernando Pessoa
in Livro do Desassossego (fragmento 295)

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Todos os movimentos da sensibilidade



«Todos os movimentos da sensibilidade, por agradáveis que sejam, são sempre interrupções de um estado, que não sei em que consiste, que é a vida íntima dessa própria sensibilidade. Não só as grandes preocupações, que nos distraem de nós, mas até as pequenas arrelias, perturbam uma quietação a que todos, sem saber, aspiramos.
Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão. Porém é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes.»

FernandoPessoa
in Livro do Desassossego (fragmento 217)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Glória



Depois do inverno, morte figurada,
a primavera, uma assunção de flores.
A vida
renascida
e celebrada
num festival de pétalas e cores.

Miguel Torga

sábado, 8 de março de 2014

Retrato de mulher triste



Retrato de Mulher Triste
Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)'

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Reconhecer a realidade como uma forma da ilusão



«Reconhecer a realidade como uma forma da ilusão, e a ilusão como uma forma da realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil. A vida contemplativa, para sequer existir, tem que considerar os acidentes objectivos como premissas dispersas de uma conclusão inatingível; mas tem ao mesmo tempo que considerar as contingências do sonho como em certo modo dignas daquela atenção a elas, pela qual nos tornamos contemplativos.
Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo, um tudo ou um nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é renová-la, multiplicá-la por si mesma. É por isso que o espírito contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito. Numa pedra dorme-se cosmicamente.»

in Livro do Desassossego (fragmento 90)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Manufacturamos Realidades




Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro.
Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma.

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

El juego en que andamos



El juego en que andamos

Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta salud de saber que estamos muy enfermos,
esta dicha de andar tan infelices.
Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta inocencia de no ser un inocente,
esta pureza en que ando por impuro.
Si me dieran a elegir, yo elegiría
este amor con que odio,
esta esperanza que come panes desesperados.
Aquí pasa, señores,
que me juego la muerte.
de "El juego en que andamos"

Juan Gelman