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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A minha sombra sou eu


                                                Foto: Google


A minha sombra sou eu,

ela não me segue,

eu estou na minha sombra

e não vou em mim.

Sombra de mim que recebo a luz,

sombra atrelada ao que eu nasci,

distância imutável de minha sombra a mim,

toco-me e não me atinjo,

só sei do que seria

se de minha sombra chegasse a mim.

Passa-se tudo em seguir-me

e finjo que sou eu que sigo,

finjo que sou eu que vou

e não que me persigo.

Faço por confundir a minha sombra comigo:

estou sempre às portas da vida,

sempre lá, sempre às portas de mim!

 

José de Almada Negreiros


sábado, 14 de outubro de 2023

O ESPÍRITO DO OUTONO

                                                           Foto: google



 

O ESPÍRITO DO OUTONO

 

Terei de falar do espírito do outono

agora que setembro

chegou ao fim. (Espírito

é palavra suspeita: não há

hipócrita que não se abrigue

à sua sombra.) Será

a embriaguez? O vento matinal

arrastando folhas

raparigas canções?

O sopro frio das estrelas?

Será a beleza,

o espírito do outono? Há um limite

para o homem, um limite

para suportar o peso do mundo.

Da beleza, da bárbara

orgulhosa beleza, quem sabe defender-se

sem medo do coração lhe rebentar?

 

Eugénio de Andrade -  "O Sal da Língua"

domingo, 8 de outubro de 2023

A Festa do Silêncio


                                              Foto: Google


A Festa do Silêncio

Escuto na palavra a festa do silêncio.

Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.

As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.

Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.

É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.


Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,

o ar prolonga. A brancura é o caminho.

Surpresa e não surpresa: a simples respiração.

Relações, variações, nada mais. Nada se cria.

Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.


Nada é inacessível no silêncio ou no poema.

É aqui a abóbada transparente, o vento principia.

No centro do dia há uma fonte de água clara.

Se digo árvore a árvore em mim respira.

Vivo na delícia nua da inocência aberta.


António Ramos Rosa, in "Volante Verde"