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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Fragmento do Homem


 


                                              Foto: google

Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objeto com preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.
E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à «sabedoria» do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado implacavelmente para transformar o indivíduo em «cadáver adiado que procria», como poderia a arte deixar de refletir uma tal situação, se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida?
Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua contradição, morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste, mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica que preocupada com uma problemática moral, que não sabe como fundar e instituir, pois nenhuma fará autoridade se não tiver em conta a totalidade do ser; nenhuma, em que espírito e vida sejam concebidos como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto reduzir o homem a um fragmento do homem. Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da exclusão.

Eugénio de Andrade, in 'Os Afluentes do Silêncio'


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Quando um Homem Quiser

                                              Foto: Google


 

Quando um Homem Quiser

Tu que dormes à noite na calçada do relento
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
és meu irmão, amigo, és meu irmão

E tu que dormes só o pesadelo do ciúme
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
e sofres o Natal da solidão sem um queixume
és meu irmão, amigo, és meu irmão

Natal é em Dezembro
mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
é quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
és meu irmão, amigo, és meu irmão

Ary dos Santos, in 'As Palavras das Cantigas'

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa...

                                                     Foto:Google

 

Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivessemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos.

Olha-se mas não se vê. A longa rua movimentada de humanos é uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.

Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, e esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça.

Parece uma constipação na alma.

 

Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O Amor é o Caminho que nos Leva à Esperança


 

                                                        Foto: Google


O amor é o caminho que nos leva à esperança. E esta não é uma espécie de consolação, enquanto se esperam dias melhores. Nem é sobretudo expectativa do que virá. Esperar não significa projetar-se num futuro hipotético, mas saber colher o invisível no visível, o inaudível no audível, e por aí fora. Descobrir uma dimensão outra dentro e além desta realidade concreta que nos é dada como presente. Todos os nossos sentidos são implicados para acolher, com espanto e sobressalto, a promessa que vem, não apenas num tempo indefinido futuro, mas já hoje, a cada momento. A esperança mantém-nos vivos. Não nos permite viver macerados pelo desânimo, absorvidos pela desilusão, derrubados pelas forças da morte. Compreender que a esperança floresce no instante é experimentar o perfume do eterno.

José Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'


segunda-feira, 1 de novembro de 2021

As nossas estradas já tiveram a timidez dos rios e a suavidade das mulheres


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As nossas estradas já tiveram a timidez dos rios e a suavidade das mulheres. E pediam licença antes de nascer. Agora, as estradas tomam posse da paisagem e estendem as suas grandes pernas sobre o Tempo, como fazem os donos do mundo.


Mulheres de Cinza - Mia Couto


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Os livros

 

                                                     Foto:Google



NUM EXEMPLAR DAS GEÓRGICAS


Os livros. A sua cálida,

terna, serena pele. Amorosa

companhia. Dispostos sempre

a partilhar o sol

das suas águas. Tão dóceis,

tão calados, tão leais.

Tão luminosos na sua

branca e vegetal e cerrada

melancolia. Amados

como nenhuns outros companheiros

da alma. Tão musicais

no fluvial e transbordante

ardor de cada dia.

 Eugénio de Andrade


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Atravessar a Própria Solidão

                                               Foto: google


 

                                             

Atravessar a Própria Solidão

A cultura contemporânea deixou de preparar-nos para a solidão. Na maior parte das vezes, essa é uma aprendizagem que temos de fazer em cima dos próprios acontecimentos ou na sua dolorosa ressaca, e de forma muito desacompanhada. É como se a solidão fosse uma eventualidade improvável na experiência humana e não, como é, um ponto de passagem obrigatório e comum.
Lembro-me de uma frase de Truman Capote que transcrevi há anos para um caderno: «Todos estamos sozinhos, debaixo dos céus, com aquilo que amamos.» Em momentos diferentes da vida, tenho regressado a ela, e sinto que ainda não me revelou a extensão integral da sua verdade.
Esquecemos que todos os dias, mesmo numa vida afetivamente integrada e febrilmente ativa, a solidão nos visita. Estamos sós quando estamos connosco próprios e em companhia. Estivemos sós em crianças, na transbordante juventude e nas décadas da vida adulta, e estaremos assim na nossa velhice. A amizade e o amor são formas de partilhar, diminuir, dar serenidade ou potenciar criativamente a solidão, mas o seu assobio ininterrupto continuará a fazer-se ouvir na ronda magnífica dos amigos ou no abraço redondo dos amantes. Ela perfura tudo. Recordá-lo é humanizar o nosso olhar sobre a realidade.
Também por esse motivo, gostei muito de encontrar as palavras lúcidas da escritora brasileira Nélida Pinon: «A solidão buscada é o lugar onde melhor aprendi a encontrar-me.»

José Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Encheram a terra de fronteiras


                                               Foto: Google

Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações – a dos vivos e dos mortos.


Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra – Mia Couto


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A Gente pouco Sabe e pouco Pode


                                                          Foto: google

A gente pouco sabe e pouco pode. Conhece apenas duas regras de higiene (que o corpo se recusa a observar), três de moral (que o instinto se recusa a praticar), e uma ou duas de civilidade (que só a polícia muito limitadamente nos faz cumprir), e pode apenas o que pode um bicho solicitado por um tropismo fundamental. Mas que maravilhoso ser seria aquele que pudesse entender a beleza perfeita duma flor, e fosse capaz de se pôr em espírito numa brancura assim, gratuita e perfumada!

Miguel Torga, in "Diário (1941)"


quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Viver o Dia-a-Dia


                                                          Foto: Google

Viver o Dia-a-Dia

Sou forçado a considerar que o pior mal dos nossos dias, aquele que não permite que nada chegue a amadurecer, reside no facto de os homens deixarem que cada momento se consuma completamente no momento seguinte, que o dia se esgote em si mesmo, ou seja, em viverem exclusivamente o dia-a-dia sem qualquer perspetiva de futuro. Até já temos jornais destinados a diferentes partes do dia!
E não custa acreditar que haja alguém com esperteza suficiente para inventar mais alguns pelo meio. Mas deste modo tudo o que se faz, tudo o que se empreende, se imagina ou se projeta vai sendo arrastado para o domínio público; ninguém pode viver as suas alegrias ou as suas tristezas sem que isso se torne passatempo dos outros.

Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões'


sábado, 7 de agosto de 2021

Quem Poderá Calcular a Órbita da sua Própria Alma?



 

                                                  Foto: google


Quem Poderá Calcular a Órbita da sua Própria Alma?

 Reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?


Oscar Wilde, in 'De Profundis'


quarta-feira, 28 de julho de 2021

No instante em que a vontade se aquieta e a observação sobrevém

 

                                               Foto: Google

No instante em que a vontade se aquieta e a observação sobrevém, no puro ato de ver e de se entregar a algo, tudo se modifica.

O ser humano deixa de ser útil ou perigoso, interessante ou monótono, atencioso ou rude, forte ou frágil.

Passa a ser parte da natureza.

Hermann Hesse - "Da Felicidade"

terça-feira, 27 de julho de 2021

Antes de nascermos já sonhamos com o mundo que está para vir

 



https://news.yale.edu/2021/07/22/eyes-wide-shut-how-newborn-mammals-dream-world-theyre-entering 


Investigação fascinante. Achei alguma semelhança com o que acontece na visualização positiva também tudo é criado duas vezes, primeiramente no plano mental ou imaginário e depois no plano real ou concreto. 

domingo, 25 de julho de 2021

A esperteza na vida conduz-nos a uma via superior, mas estreita, de auto - engano


                                                               Foto: google


A esperteza na vida conduz-nos a uma via superior, mas estreita, de auto - engano.

Na nossa ansiedade existencial, preocupamo-nos com a possibilidade de não nos conhecermos, de não compreendermos totalmente a natureza ou de os nossos filhos crescerem sem as competências necessárias ao seu êxito. Sentimo-nos obrigados a ler a obra popular do momento e a descobrir um professor extraordinário ou uma escola válida. Apostamos em novas teorias e tecnologias de aprendizagem.

Contudo, parecemos incapazes de satisfazer as necessidades básicas – manter um casamento, criar filhos tranquilos, viver em bairros seguros e sentir satisfação no trabalho.

Talvez não devêssemos olhar muito para a frente, perdendo o que se encontra perante nós, e talvez devêssemos olhar para tudo o que está a nossa frente e não apenas para aquilo que desejaríamos que lá estivesse.

 

Thomas Moore – “ O self Original & Meditações”


domingo, 18 de julho de 2021

No silêncio distraído de uma varanda


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No silêncio distraído de uma varanda que foi o teu único castelo, ecoam ainda os teus passos feitos não para caminhar, mas para acariciar o chão.

Vagas e Lumes - Mia Couto

sábado, 10 de julho de 2021

Olhamos com insistência para o passado

 

                                                           Foto: google



“Segundo a lei da vida, cada vez que uma porta se fecha para nós, outra se abre. O ruim é que, com frequência, olhamos com muita insistência para o passado e sentimos tanta falta da porta fechada que não vemos aquela que acaba de se abrir.”

Albert Schweitzer

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Toma um café contigo mesmo


 


Toma um café contigo mesmo

No próprio cerne das mudanças há um receio implícito de ficarmos sós. É interessante como o conceito de solidão adquire aspetos diferentes dependendo de como se perceba esta maneira de estar no mundo.

Para algumas pessoas, estar sozinho é uma escolha que requer uma forte personalidade e uma boa dose de coragem. Não percamos de vista que a companhia não é um presente que a vida nos dá para sempre. Por distintas circunstâncias, todos podemos ver-nos sós de um momento para o outro, sem que o tenhamos escolhido.

Há várias maneiras de encarar a vida, e uma delas é preparar-se cuidadosamente para quando chegar esse momento.

O verdadeiro significado de tomar um café consigo mesmo é a proximidade com a sua alma.

Podemos aprender a desfrutar do encontro connosco e aproveitá-lo para nos conhecermos mais profundamente.

 

“Toma um café contigo mesmo” – Walter Dresel – “Faça uma pausa para se conhecer melhor !”


domingo, 20 de junho de 2021

Ah, abram-me outra realidade!


                                                     Foto: google


 

Ah, abram-me outra realidade!

Quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos

E ter visões por almoço.

Quero encontrar as fadas na rua!

Quero desimaginar-me deste mundo feito com garras,

Desta civilização feita com pregos.

Quero viver como uma bandeira à brisa,

Símbolo de qualquer coisa no alto de uma coisa qualquer!

Depois encerrem-me onde queiram.

Meu coração verdadeiro continuará velando

Pano brasonado a esfinges,

No alto do mastro das visões

Aos quatro ventos do Mistério.

O Norte — o que todos querem

O Sul — o que todos desejam

O Este — de onde tudo vem

O Oeste — aonde tudo finda

— Os quatro ventos do místico ar da civilização

— Os quatro modos de não ter razão, e de entender o mundo

 

 

4-4-1929

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. 

 - 99.

 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Sonhos à procura de tempo


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  alma de gente, sonhos à procura de tempo.


Vagas e Lumes - Mia Couto


sexta-feira, 14 de maio de 2021

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Criemos a força calma

 

                                              Foto: Google

Criemos a força calma. Temo-nos mostrado capazes de a ter em muita coisa. Mostremos que a sabemos ter em todas as coisas.


Bernardo Soares

s.d.

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.

  - 147.

"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.


terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Sozinho

 

                                              Foto: google

... olhando a paisagem como se fosse parte dele já envelhecida.

" Mapeador de Ausências" - Mia Couto

domingo, 31 de janeiro de 2021

Ausências e silêncios


                                                Foto: google


…Carrega ausências e silêncios como se fossem sementes…

 

“ O mapeador de ausências” – Mia Couto