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sábado, 31 de maio de 2025

Sei que seria possível construir o mundo justo


                                                    Foto: Google


A Forma Justa

Sei que seria possível construir o mundo justo

As cidades poderiam ser claras e lavadas

Pelo canto dos espaços e das fontes

O céu o mar e a terra estão prontos

A saciar a nossa fome do terrestre

A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia

Cada dia a cada um a liberdade e o reino

— Na concha na flor no homem e no fruto

Se nada adoecer a própria forma é justa

E no todo se integra como palavra em verso

Sei que seria possível construir a forma justa

De uma cidade humana que fosse

Fiel à perfeição do universo


Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco

E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo


Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"


terça-feira, 20 de maio de 2025

Primavera é vida


                                             Foto: Google


Primavera é vida

 que veste as árvores com poemas em forma de flor

 e anda por dentro dos dias a acordar os pássaros."

 

FERNANDA BOTELHO, escritora e tradutora portuguesa (1926-2007)


quarta-feira, 7 de maio de 2025

As fronteiras de onde não queremos nunca sair


                                              Foto: Google


O que trazemos nas malas não é apenas o que necessitamos.

São as paredes da nossa fortaleza, as fronteiras de onde não queremos  nunca sair.

 

 

Mia Couto – A Cegueira do rio


segunda-feira, 28 de abril de 2025

ESCADA SEM CORRIMÃO

 

                                                          Foto: Google


 ESCADA SEM CORRIMÃO

“É uma escada em caracol

e que não tem corrimão.

Vai a caminho do Sol

mas nunca passa do chão.

 

Os degraus, quanto mais altos,

mais estragados estão.

Nem sustos nem sobressaltos

servem sequer de lição.

 

Quem tem medo não a sobe.

Quem tem sonhos também não.

Há quem chegue a deitar fora

o lastro do coração.

 

Sobe-se numa corrida.

Correm-se perigos em vão.

Adivinhaste: é a vida

a escada sem corrimão."

 

DAVID MOURÃO-FERREIRA, escritor e poeta português (1927-96), in “Obra poética 1948-1988”, Ed. Presença, 1988


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Alentejo


                                                     Foto: Google


Alentejo

A paz aqui é diferente.

É como se houvesse um silêncio por dentro das coisas.


domingo, 23 de março de 2025

Há plantas que rasgam o asfalto

 

                                              Foto: Google


Há plantas que rasgam o asfalto. Deixam para trás uma fissura como prova da sua força, do caminho percorrido, da agonia que sufoca antes da golfada de ar. Como o passar do tempo, a planta que fura o asfalto torna -se também ela asfalto. Fica a fissura para nos lembrar de que é possível dançar em contramão. É possível a terra ser o início e não o fim.

 

Nem todas as árvores morrem de pé – Luísa Sobral


terça-feira, 18 de março de 2025

O silêncio das máquinas e a voz da alma


                                                  Dino D'Santiago


O silêncio das máquinas e a voz da alma

 

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos.

Antes de partir para o Brasil, onde mergulharia numa imersão de composição e criação, entrelaçando novas canções nas águas desse Atlântico que sempre nos uniu, estive numa sessão de estúdio. A missão era simples: fazer arranjos vocais para um par de canções. Mas o que lá vivi ficou-me gravado como uma ferida invisível.

Apresentaram-me um programa de Inteligência Artificial capaz de tomar a minha voz – esse timbre único, moldado pelo tempo, pelas alegrias e cicatrizes – e vesti-la com outros rostos, outras histórias, outras almas. Em segundos, ouvi-me transformado, como se a minha essência tivesse sido arrancada e redesenhada sem consentimento. A minha voz poderia agora ser substituída por vozes femininas e masculinas de artistas imortais, alguns ainda vivos, outros que já partiram para o outro plano da vida. O sagrado era agora um jogo de combinações digitais.

Tratou-se apenas de uma demonstração - as "vozes" não passaram para a gravação final - mas, lembro-me ainda do arrepio na pele. Da estranheza que me atravessou o peito. Do desconforto que só mais tarde reconheci pelo nome: quase um estupro da alma humana. Porque, ali, naquele instante, percebi que nenhuma daquelas vozes, nem a minha, nem as dos que já tinham cantado antes de mim, teria qualquer direito sobre o próprio som. Tudo aquilo que um cantor deposita na sua voz — as dores, os sorrisos, os dias bons e os dias de luto — era agora reduzido a matéria-prima para a conveniência de um código.

E assim, ali mesmo, compreendi o verdadeiro perigo que espreita por trás das maravilhas tecnológicas.

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos. As canções não serão mais herdeiras da dor, do êxtase, da fome ou do fulgor, mas sim espectros digitais, vazios de cicatrizes, despidos de alma.

As mãos que outrora arrancavam melodias à madeira e ao metal, que moldavam harmonias como quem escava o próprio peito, serão substituídas por linhas de código. Um algoritmo aprenderá os nossos segredos, ouvirá as nossas preces e devolverá ao mundo uma versão refinada, matematicamente perfeita, mas desprovida do indizível – esse mistério que só o humano transporta.

As grandes fábricas invisíveis da modernidade devoram notas, versos, harmonias, mastigam o génio dos séculos passados e expelem sinfonias sintéticas, canções sem um rosto, sem um nome, sem um suspiro. E aqueles que ainda hoje vertem a sua alma sobre o papel, que extraem dos ossos o som da existência, perguntar-se-ão: onde está o direito sobre aquilo que não pode ser possuído? Quem protegerá o indomável, o errante, o sublime que habita entre os erros e os acasos?

Chamam-lhe revolução, progresso, um novo tempo. Mas, se o tempo se esquece do humano, será ainda tempo ou apenas uma sucessão de instantes mortos? Se a arte já não pede ao criador a experiência do mundo, se a canção já não exige o fogo da vida, que lugar restará para aqueles que nasceram para sentir?

Hoje, ainda há um homem com um violão a cantar para a lua. Ainda há uma mulher a compor ao piano, como quem desenha saudades na neblina do tempo. Mas até quando?

O perigo não está no advento da máquina. Está no dia em que aceitarmos a perfeição sem alma, o brilho sem suor, a criação sem criador. No dia em que confundirmos o reflexo com o real, o eco com a voz, a simulação com a existência.

A música é a oração dos que não têm igreja, o grito dos que não têm pátria, o refúgio dos que dançam na solidão. E se deixarmos que ela se torne um produto sem nome, sem corpo, sem memória, o que restará de nós?

Este é o tempo de decidir se queremos ser autores ou apenas ruído branco no imenso vazio das máquinas.

 

O silêncio das máquinas e a voz da alma© Expresso – Dino D'Santiago