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sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A Paz sem Vencedor e sem Vencidos

 

                                                  Foto: Google


A Paz sem Vencedor e sem Vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Que o tempo que nos deste seja um novo

Recomeço de esperança e de justiça

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Erguei o nosso ser à transparência

Para podermos ler melhor a vida

Para entendermos vosso mandamento

Para que venha a nós o vosso reino

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Fazei Senhor que a paz seja de todos

Dai-nos a paz que nasce da verdade

Dai-nos a paz que nasce da justiça

Dai-nos a paz chamada liberdade

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dual'


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A coisa mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe

                                                  Foto: Google



 

A coisa mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe. Estes são um raio- x infalível. Não ficam apenas a olhar as aparências, antes penetram naquele fundo secreto e silencioso da vida e sabem interpretá-lo, respeitando, contudo, e com delicadeza, o seu segredo.

Quantas vezes, já adultos e elas avançadas em idade, voltamos a casa e elas tinham à nossa espera, preparado, o nosso prato favorito ou, quando nos despedíamos, obrigavam-nos a levar o resto a sobremesa ou um saco com o bolo que elas próprias fizeram?

Quantas vezes demos com os olhos delas a investigarem o nosso rosto, a derramar-se para dentro dos nossos olhos, perguntando-se que sede seria agora a nossa e como poderiam ainda ajudar a saciá-la?.

O olhar de uma mãe humaniza o filho.

 

José Tolentino Mendonça – Elogio da Sede – Ed. QUETZAL

domingo, 1 de setembro de 2024

Vento que passas


                                                     Foto: google


Vento que passas

Vento que passas, leva-me contigo.

Sou poeira também, folha de outono.

Rês tresmalhada que não quer abrigo

No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me, e livre deixa-me cair

No deserto de todas as lembranças,

Onde eu possa dormir

Como no limbo dormem as crianças.

Miguel Torga, Diário, vol. V, 1951


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?


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O conto do menino que escrevia versos

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Verso do menino que fazia versos)

— Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confecionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

— São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte elétrica.

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

— Dói-te alguma coisa?

—Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:

— E o que fazes quando te assaltam essas dores?

— O que melhor sei fazer, excelência.

— E o que é?

— É sonhar.

Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?

— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.

— Não importa — respondeu o doutor.

Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

— Não pare, meu filho. Continue lendo…

Mia Couto no livro “O fio das missangas”.
Companhia das Letras, 2009.


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Felizmente, somos todos diferentes

 

                                                  Foto: Google


ODE À DIFERENÇA (excerto)

 

"Felizmente. 

Somos todos diferentes. Temos todos 

o nosso espaço próprio de coisinhas

próprias, como narizes e manias, 

bocas, sonhos, olhos que veem céus

em daltonismos próprios. Felizmente. 

Se não o mundo era uma bola enorme 

de sabão e nós todos lá dentro

a borbulhar, todos iguais em sopro: 

pequenas explosões de crateras iguais."

 

ANA LUÍSA AMARAL


quarta-feira, 17 de julho de 2024

Mais Solitários do que Supomos

 

                                              Foto: google


Mais Solitários do que Supomos

À força de estarmos conectados, numa disponibilidade indistinta e sem horário, acabamos por nos desconectar das pessoas a quem mais queremos. O resultado é este: ficamos mais próximos dos desconhecidos e mais desconhecidos dos que nos são próximos. São muitas as atitudes que podemos tomar para diminuir saudavelmente o nosso grau de hiperconexão à net, reconquistando espaços de qualidade, de reflexão, de governo de si, de partilha com os outros ou de necessário repouso.
A primeira atitude, porém, é afirmar o direito a desconectar-se. Só isso fará recuar a síndrome da «hiperconectividade» que nos condiciona a todos, indiferentemente de idades e contextos: mensagem chama mensagem, e com uma urgência que se sobrepõe a tudo; os pais atendem mais vezes o telemóvel do que aos filhos pequenos que vivem com eles; os amigos não conseguem dizer uns aos outros «gosto muito de ti, mas não vou responder a todos os teus whatsapp»; os namorados não sabem amar-se sem a mediação das redes sociais; gasta-se um tempo precioso a responder, replicar, retorquir tontices por monossílabos, alimentando a ilusão de que diante de um ecrã nunca se está sozinho. Mas aí estamos solitários mais vezes do que supomos.

José Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'


sexta-feira, 28 de junho de 2024

Vivemos quase sempre fora de nós mesmos


                                              Foto: Google


Vivemos quase sempre fora de nós mesmos, e a vida é uma contínua dispersão.

Mas é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual, como planetas, traçamos eclipses absurdas e distantes.

 

Fernando Pessoa – Livro do Desassossego