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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O que significa sermos capazes de olhar os lírios do campo e as aves no céu?


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 O que significa sermos capazes de olhar os lírios do campo e as aves no céu?

Significa adotar uma atitude contemplativa. Precisamos de olhar, mas não apenas como habitualmente fazemos, pois a maior parte das vezes o nosso olhar morre junto aos sapatos.

 José Tolentino Mendonça – “ A vida em nós”

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A Paz sem Vencedor e sem Vencidos

 

                                                  Foto: Google


A Paz sem Vencedor e sem Vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Que o tempo que nos deste seja um novo

Recomeço de esperança e de justiça

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Erguei o nosso ser à transparência

Para podermos ler melhor a vida

Para entendermos vosso mandamento

Para que venha a nós o vosso reino

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Fazei Senhor que a paz seja de todos

Dai-nos a paz que nasce da verdade

Dai-nos a paz que nasce da justiça

Dai-nos a paz chamada liberdade

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dual'


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A coisa mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe

                                                  Foto: Google



 

A coisa mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe. Estes são um raio- x infalível. Não ficam apenas a olhar as aparências, antes penetram naquele fundo secreto e silencioso da vida e sabem interpretá-lo, respeitando, contudo, e com delicadeza, o seu segredo.

Quantas vezes, já adultos e elas avançadas em idade, voltamos a casa e elas tinham à nossa espera, preparado, o nosso prato favorito ou, quando nos despedíamos, obrigavam-nos a levar o resto a sobremesa ou um saco com o bolo que elas próprias fizeram?

Quantas vezes demos com os olhos delas a investigarem o nosso rosto, a derramar-se para dentro dos nossos olhos, perguntando-se que sede seria agora a nossa e como poderiam ainda ajudar a saciá-la?.

O olhar de uma mãe humaniza o filho.

 

José Tolentino Mendonça – Elogio da Sede – Ed. QUETZAL

domingo, 1 de setembro de 2024

Vento que passas


                                                     Foto: google


Vento que passas

Vento que passas, leva-me contigo.

Sou poeira também, folha de outono.

Rês tresmalhada que não quer abrigo

No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me, e livre deixa-me cair

No deserto de todas as lembranças,

Onde eu possa dormir

Como no limbo dormem as crianças.

Miguel Torga, Diário, vol. V, 1951


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?


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O conto do menino que escrevia versos

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Verso do menino que fazia versos)

— Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confecionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

— São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte elétrica.

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

— Dói-te alguma coisa?

—Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:

— E o que fazes quando te assaltam essas dores?

— O que melhor sei fazer, excelência.

— E o que é?

— É sonhar.

Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?

— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.

— Não importa — respondeu o doutor.

Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

— Não pare, meu filho. Continue lendo…

Mia Couto no livro “O fio das missangas”.
Companhia das Letras, 2009.


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Felizmente, somos todos diferentes

 

                                                  Foto: Google


ODE À DIFERENÇA (excerto)

 

"Felizmente. 

Somos todos diferentes. Temos todos 

o nosso espaço próprio de coisinhas

próprias, como narizes e manias, 

bocas, sonhos, olhos que veem céus

em daltonismos próprios. Felizmente. 

Se não o mundo era uma bola enorme 

de sabão e nós todos lá dentro

a borbulhar, todos iguais em sopro: 

pequenas explosões de crateras iguais."

 

ANA LUÍSA AMARAL


quarta-feira, 17 de julho de 2024

Mais Solitários do que Supomos

 

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Mais Solitários do que Supomos

À força de estarmos conectados, numa disponibilidade indistinta e sem horário, acabamos por nos desconectar das pessoas a quem mais queremos. O resultado é este: ficamos mais próximos dos desconhecidos e mais desconhecidos dos que nos são próximos. São muitas as atitudes que podemos tomar para diminuir saudavelmente o nosso grau de hiperconexão à net, reconquistando espaços de qualidade, de reflexão, de governo de si, de partilha com os outros ou de necessário repouso.
A primeira atitude, porém, é afirmar o direito a desconectar-se. Só isso fará recuar a síndrome da «hiperconectividade» que nos condiciona a todos, indiferentemente de idades e contextos: mensagem chama mensagem, e com uma urgência que se sobrepõe a tudo; os pais atendem mais vezes o telemóvel do que aos filhos pequenos que vivem com eles; os amigos não conseguem dizer uns aos outros «gosto muito de ti, mas não vou responder a todos os teus whatsapp»; os namorados não sabem amar-se sem a mediação das redes sociais; gasta-se um tempo precioso a responder, replicar, retorquir tontices por monossílabos, alimentando a ilusão de que diante de um ecrã nunca se está sozinho. Mas aí estamos solitários mais vezes do que supomos.

José Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'