Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda
a extensão do espírito, que não deixam pensar que não deixam agir, que não
deixam claramente ser. Como se não tivessemos dormido, sobrevive em nós
qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície
estagnada dos sentidos.
Olha-se mas não se vê. A longa rua movimentada de humanos é
uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem
sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um
sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.
Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É
uma vontade de dormir com outra personalidade, e esquecer com melhoria de
vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer
umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária,
uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos
olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça.
Parece uma constipação na alma.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I.
Fernando Pessoa.