A Vida deve Ser um Sonho que se Recusa a Confrontos
Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida - figuras
ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer
das virtudes - deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes
para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos,
da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só
tem que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital
em nós.
Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos
defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é
externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo.
Disse Horácio, falando do varão justo, que ficaria impávido ainda que em torno
dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em
torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar
impávidos - não porque sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é
nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que
para elas somos.
A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.
Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'