Lição de caligrafia
Começo por confessar um segredo:
A escrita é um rio. As vogais são a água. As consoantes são pedras. A escrita é um
rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das
pessoas nunca viajou nesse barco.
Repara, filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço
entre as palavras é um suspiro. Um parágrafo é um degrau. A escrita é uma
escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos
tornarmos pequenos.
Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde
estendes os panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao
vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.
Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não
pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase
seguinte, já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos
depende dos outros que, junto connosco, costuram as frases.
Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te
deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que
mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se
escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.
Lembra-te filha: há vários modos de ser analfabeto, um deles
é esquecer que o papel já foi árvore, que a tinta e o lápis já foram suor de
gente anónima. Outro modo de ser analfabeto é desconhecermos a nossa própria
historia.
Mia Couto – Compêndio para desenterrar nuvens- Ed. Caminho