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domingo, 29 de dezembro de 2024

Ah querem uma luz melhor que a do sol!

 

                                              Foto: Google


Ah querem uma luz melhor que a do sol!

Querem campos mais verdes que estes!

Querem flores mais belas que estas que vejo!

A mim este sol, estes campos, estas flores contentam-me.

Mas, se acaso me descontento,

O que quero é um sol mais sol que o sol,

O que quero é campos mais campos que estes prados,

O que quero é flores mais estas flores que estas flores —

Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!

Aquela coisa que está ali estava mais ali que ali está!

Sim, choro às vezes o corpo perfeito que não existe.

Mas o corpo perfeito é o corpo mais corpo que pode haver,

E o resto são os sonhos dos homens,

A miopia de quem vê pouco,

E o desejo de estar sentado de quem não sabe estar de pé.

Todo o cristianismo é um sonho de cadeiras.

E como a alma é aquilo que não aparece,

A alma mais perfeita é aquela que não apareça nunca —

A alma que está feita com o corpo

O absoluto corpo das coisas,

A existência absolutamente real sem sombras nem erros

A coincidência exacta (e inteira) de uma coisa consigo mesma.

12-4-1919

“Poemas Inconjuntos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

 

1994.

  - 145.


domingo, 1 de dezembro de 2024

O Natal do Comércio


                                                Foto: Google


O Natal do Comércio

O Natal do comércio chega de um dia para o outro. Fácil, tilintante, confuso, pré-fabricado. É um Natal visual.

O Natal não pode servir apenas para uma emoção social, para um corrupio de compensações, compras e trocas. Para ser verdade, o Natal tem de ser fundo, pessoal, despojado, interpelador, silencioso, solidário, espiritual.

 

José Tolentino Mendonça – “ A vida em nós- Aforismos”


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O que significa sermos capazes de olhar os lírios do campo e as aves no céu?


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 O que significa sermos capazes de olhar os lírios do campo e as aves no céu?

Significa adotar uma atitude contemplativa. Precisamos de olhar, mas não apenas como habitualmente fazemos, pois a maior parte das vezes o nosso olhar morre junto aos sapatos.

 José Tolentino Mendonça – “ A vida em nós”

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A Paz sem Vencedor e sem Vencidos

 

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A Paz sem Vencedor e sem Vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Que o tempo que nos deste seja um novo

Recomeço de esperança e de justiça

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Erguei o nosso ser à transparência

Para podermos ler melhor a vida

Para entendermos vosso mandamento

Para que venha a nós o vosso reino

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Fazei Senhor que a paz seja de todos

Dai-nos a paz que nasce da verdade

Dai-nos a paz que nasce da justiça

Dai-nos a paz chamada liberdade

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos


Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dual'


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A coisa mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe

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A coisa mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe. Estes são um raio- x infalível. Não ficam apenas a olhar as aparências, antes penetram naquele fundo secreto e silencioso da vida e sabem interpretá-lo, respeitando, contudo, e com delicadeza, o seu segredo.

Quantas vezes, já adultos e elas avançadas em idade, voltamos a casa e elas tinham à nossa espera, preparado, o nosso prato favorito ou, quando nos despedíamos, obrigavam-nos a levar o resto a sobremesa ou um saco com o bolo que elas próprias fizeram?

Quantas vezes demos com os olhos delas a investigarem o nosso rosto, a derramar-se para dentro dos nossos olhos, perguntando-se que sede seria agora a nossa e como poderiam ainda ajudar a saciá-la?.

O olhar de uma mãe humaniza o filho.

 

José Tolentino Mendonça – Elogio da Sede – Ed. QUETZAL

domingo, 1 de setembro de 2024

Vento que passas


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Vento que passas

Vento que passas, leva-me contigo.

Sou poeira também, folha de outono.

Rês tresmalhada que não quer abrigo

No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me, e livre deixa-me cair

No deserto de todas as lembranças,

Onde eu possa dormir

Como no limbo dormem as crianças.

Miguel Torga, Diário, vol. V, 1951


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?


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O conto do menino que escrevia versos

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Verso do menino que fazia versos)

— Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confecionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

— São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte elétrica.

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

— Dói-te alguma coisa?

—Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:

— E o que fazes quando te assaltam essas dores?

— O que melhor sei fazer, excelência.

— E o que é?

— É sonhar.

Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?

— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.

— Não importa — respondeu o doutor.

Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

— Não pare, meu filho. Continue lendo…

Mia Couto no livro “O fio das missangas”.
Companhia das Letras, 2009.


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Felizmente, somos todos diferentes

 

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ODE À DIFERENÇA (excerto)

 

"Felizmente. 

Somos todos diferentes. Temos todos 

o nosso espaço próprio de coisinhas

próprias, como narizes e manias, 

bocas, sonhos, olhos que veem céus

em daltonismos próprios. Felizmente. 

Se não o mundo era uma bola enorme 

de sabão e nós todos lá dentro

a borbulhar, todos iguais em sopro: 

pequenas explosões de crateras iguais."

 

ANA LUÍSA AMARAL


quarta-feira, 17 de julho de 2024

Mais Solitários do que Supomos

 

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Mais Solitários do que Supomos

À força de estarmos conectados, numa disponibilidade indistinta e sem horário, acabamos por nos desconectar das pessoas a quem mais queremos. O resultado é este: ficamos mais próximos dos desconhecidos e mais desconhecidos dos que nos são próximos. São muitas as atitudes que podemos tomar para diminuir saudavelmente o nosso grau de hiperconexão à net, reconquistando espaços de qualidade, de reflexão, de governo de si, de partilha com os outros ou de necessário repouso.
A primeira atitude, porém, é afirmar o direito a desconectar-se. Só isso fará recuar a síndrome da «hiperconectividade» que nos condiciona a todos, indiferentemente de idades e contextos: mensagem chama mensagem, e com uma urgência que se sobrepõe a tudo; os pais atendem mais vezes o telemóvel do que aos filhos pequenos que vivem com eles; os amigos não conseguem dizer uns aos outros «gosto muito de ti, mas não vou responder a todos os teus whatsapp»; os namorados não sabem amar-se sem a mediação das redes sociais; gasta-se um tempo precioso a responder, replicar, retorquir tontices por monossílabos, alimentando a ilusão de que diante de um ecrã nunca se está sozinho. Mas aí estamos solitários mais vezes do que supomos.

José Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'


sexta-feira, 28 de junho de 2024

Vivemos quase sempre fora de nós mesmos


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Vivemos quase sempre fora de nós mesmos, e a vida é uma contínua dispersão.

Mas é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual, como planetas, traçamos eclipses absurdas e distantes.

 

Fernando Pessoa – Livro do Desassossego


segunda-feira, 17 de junho de 2024

O poema me levará no tempo


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O poema me levará no tempo

Quando eu já não for eu

E passarei sozinha

Entre as mãos de quem lê

 

O poema alguém o dirá

Às searas

 

Sua passagem se confundirá

Com o rumor do mar com o passar do vento

 

O poema habitará

O espaço mais concreto e mais atento

 

No ar claro nas tardes transparentes

Suas sílabas redondas

 

(Ó antigas ó longas

Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará

Uma praia onde quebrar as suas ondas

 

E entre quatro paredes densas

De funda e devorada solidão

Alguém seu próprio ser confundirá

Com o poema no tempo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto


domingo, 2 de junho de 2024

Aos jacarandás de Lisboa

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Aos jacarandás de Lisboa

São eles que anunciam o verão.

Não sei doutra glória, doutro

paraíso: à sua entrada os jacarandás

estão em flor, um de cada lado.

E um sorriso, tranquila morada,

à minha espera.

O espaço a toda a roda

multiplica os seus espelhos, abre

varandas para o mar.

É como nos sonhos mais pueris:

posso voar quase rente

às nuvens altas — irmão dos pássaros —,

perder-me no ar.

 

- Eugénio de Andrade, do livro "Os sulcos da sede (2001)"/em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 582.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

É tão fundo o silêncio…


Foto: Google



 

É tão fundo o silêncio…

É tão fundo o silêncio entre as estrelas.

Nem o som da palavra se propaga,

Nem o canto das aves milagrosas.

Mas lá, entre as estrelas, onde somos

Um astro recriado, é que se ouve

O íntimo rumor que abre as rosas.


– José Saramago, em “Provavelmente alegria”. Lisboa: Editorial Caminho, 1985.

sábado, 4 de maio de 2024

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Esta é a madrugada que eu esperava



Fotos: google


Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1974

 

domingo, 7 de abril de 2024

"Março" é o poema escrito por Alice Neto de Sousa para as comemorações dos 50 anos do 25 de abril


O poema foi incluído na cápsula do tempo, feita em cortiça, e que irá ser aberta no centenário da revolução, em 2074.


segunda-feira, 25 de março de 2024

Se eu definisse o tempo como um rio

 

                                              Foto: Google


Se eu definisse o tempo como um rio,

a comparação levar-me-ia a tirar-te

de dentro da sua água, e a inventar-te

uma casa. Poria uma escada encostada

à parede, e sentar-te-ias num dos seus

degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:

«Não te apresses: também a água deste

rio é vagarosa, como o tempo que os

teus dedos suspendem, antes de virar

cada página.» Passam as nuvens no céu;

nascem e morrem as flores do campo;

partem e regressam as aves; e tu lês

o livro, como se o tempo tivesse parado,

e o rio não corresse pelos teus olhos.


Nuno Júdice

sábado, 16 de março de 2024

"As disjunções perfeitas"


                                            Foto: Disjunção espacial- Maria Lynch


"As disjunções perfeitas"

O homem que dizem na minha rua

ter ligeira disfunção mental

disse-me hoje de manhã «bom dia»,

com um sorriso rasgado de malmequer,

ou de papoila fresca, ou plátano fresco

(ou qualquer coisa bela do mundo vegetal)

 

E, como eu comentava sobre o dia

(azul de primavera), acrescentou:

«Deus é assim. É pródigo,»

 

ah! infinito tudo, admirável mundo

que, enfim,

de lado a lado se ilumina:

de som, de fino pólen, de tão puro

neurónio

em disjunção divina

 

Ana Luísa Amaral (2022:p.245), O Olhar Diagonal das Coisas.


quarta-feira, 6 de março de 2024

Deus na escuridão


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Deus na escuridão

 

As mães libertam seus filhos e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas e passarão todo tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.

Irão buscá-los eternamente.

Sabem amar acima de qualquer defeito, de qualquer falha, com cada vez mais saudades.

As lembranças dos filhos são sempre nascentes e não haverão jamais de terminar.

Este amor é sempre um sentimento que se exerce na escuridão.

 

Deus na EscuridãoValter Hugo Mãe – Porto Editora


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Ampliar o olhar


                                                    Foto: Google


Ampliar o olhar

Vivemos dobrados sobre o restrito, aprisionados a um quotidiano utilitarista e estreito em que a vida perde a sua respiração.

Há uma leveza que precisamos aprender:

Uma transparência que dilata a alma e nos mantém ligados à chama pequenina da esperança

 

O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas  - José  Tolentino de Mendonça


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Só o silencio é liso


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Só o silencio é liso

Por aqui a escrita é um sol encoberto

alguns resíduos de luz dispersos ao acaso

 

os pássaros nas linhas do esquecimento

perdem-se do canto na mão que escreve

 

vocábulos de orvalho em lago de limos.

São peixes escorregadios 

que não deixam de se debater

 

em tempo de guerra toda a palavra é curva

só o silêncio é liso 

e grita.

 

 

Lídia Borges - blog Seara de versos


sábado, 3 de fevereiro de 2024

Alguma coisa tem de haver para explicar a dor de se ficar calado


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Alguma coisa tem de haver para explicar a dor de se ficar calado, na condição de mortos-vivos, enquanto à nossa volta um mundo por ordenar declara urgência de palavras, aquelas que, constituídas da matéria do próprio silêncio, servem para declarar guerra à erva daninha da indiferença.

[…]

Anda por aí muito silêncio a transformar palavras em medo. Andam muitas bocas com coisas por dizer e, no entanto, amordaçadas pela indiferença, que por esta altura já cresceu tanto que se tornou difícil de romper.



(Ana Paula Tavares (2.ª edição, 2022: p. 53), O sangue da Buganvília)


sábado, 27 de janeiro de 2024

A solidão é a condição inevitável do homem

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 A solidão é a condição inevitável do homem

 

Quando estou só reconheço

se por momentos me esqueço

que existo entre outros que são

como eu sós, salvo que estão

alheados desde o começo.

 

E se sinto quanto estou

verdadeiramente só,

sinto-me livre mas triste.

Vou livre para onde vou,

mas onde vou nada existe.

 

Creio contudo que a vida

devidamente entendida

é toda assim, toda assim.

Por isso passo por mim

como por coisa esquecida.

9-8-1931

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

  - 67.


quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Lição de caligrafia

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Lição de caligrafia

Começo por confessar um segredo:

A escrita é um rio. As vogais são a  água. As consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.

Repara, filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço entre as palavras é um suspiro. Um parágrafo é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos.

Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde estendes os panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.

Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte, já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as frases.

Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.

Lembra-te filha: há vários modos de ser analfabeto, um deles é esquecer que o papel já foi árvore, que a tinta e o lápis já foram suor de gente anónima. Outro modo de ser analfabeto é desconhecermos a nossa própria historia.

 

Mia Couto – Compêndio para desenterrar nuvens- Ed. Caminho


sábado, 13 de janeiro de 2024

A Intolerância é uma Brutal Realidade

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A Intolerância é uma Brutal Realidade

Nós vivemos num tempo que se caracteriza pela irracionalidade dos comportamentos gerais, e pôr aqui um pouco de senso comum, no sentido de que, acima de tudo, o que há a proteger é a vida  é quase impossível.

E mais se esse ser humano enfrenta outro ser humano porque crê num outro deus, ou porque, ao ter uma outra tradição, vê o outro como um inimigo. A partir do momento em que vemos o próximo como inimigo, a guerra está declarada. 

A intolerância não é uma tendência, é uma brutal realidade.

José Saramago, in 'Expresso (2008)'

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Não tenhas medo, ouve

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Não tenhas medo, ouve

Não tenhas medo, ouve:

É um poema.

Um misto de oração e de feitiço…

Sem qualquer compromisso,

Ouve-o atentamente,

De coração lavado.

Poderás decorá-lo

E rezá-lo

Ao deitar,

Ao levantar,

Ou nas restantes horas de tristeza.

Na segura certeza

De que mal não te faz.

E pode acontecer que te dê paz…

Miguel Torga in “Diário XIII”