Dino D'Santiago
O silêncio das máquinas e a voz da alma
Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá
do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos.
Antes de partir para o Brasil, onde mergulharia numa imersão
de composição e criação, entrelaçando novas canções nas águas desse Atlântico
que sempre nos uniu, estive numa sessão de estúdio. A missão era simples: fazer
arranjos vocais para um par de canções. Mas o que lá vivi ficou-me gravado como
uma ferida invisível.
Apresentaram-me um programa de Inteligência Artificial capaz
de tomar a minha voz – esse timbre único, moldado pelo tempo, pelas alegrias e
cicatrizes – e vesti-la com outros rostos, outras histórias, outras almas. Em
segundos, ouvi-me transformado, como se a minha essência tivesse sido arrancada
e redesenhada sem consentimento. A minha voz poderia agora ser substituída por
vozes femininas e masculinas de artistas imortais, alguns ainda vivos, outros
que já partiram para o outro plano da vida. O sagrado era agora um jogo de
combinações digitais.
Tratou-se apenas de uma demonstração - as "vozes"
não passaram para a gravação final - mas, lembro-me ainda do arrepio na pele.
Da estranheza que me atravessou o peito. Do desconforto que só mais tarde
reconheci pelo nome: quase um estupro da alma humana. Porque, ali, naquele
instante, percebi que nenhuma daquelas vozes, nem a minha, nem as dos que já
tinham cantado antes de mim, teria qualquer direito sobre o próprio som. Tudo
aquilo que um cantor deposita na sua voz — as dores, os sorrisos, os dias bons
e os dias de luto — era agora reduzido a matéria-prima para a conveniência de
um código.
E assim, ali mesmo, compreendi o verdadeiro perigo que
espreita por trás das maravilhas tecnológicas.
Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá
do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos. As canções não serão mais
herdeiras da dor, do êxtase, da fome ou do fulgor, mas sim espectros digitais,
vazios de cicatrizes, despidos de alma.
As mãos que outrora arrancavam melodias à madeira e ao
metal, que moldavam harmonias como quem escava o próprio peito, serão
substituídas por linhas de código. Um algoritmo aprenderá os nossos segredos,
ouvirá as nossas preces e devolverá ao mundo uma versão refinada,
matematicamente perfeita, mas desprovida do indizível – esse mistério que só o
humano transporta.
As grandes fábricas invisíveis da modernidade devoram notas,
versos, harmonias, mastigam o génio dos séculos passados e expelem sinfonias
sintéticas, canções sem um rosto, sem um nome, sem um suspiro. E aqueles que
ainda hoje vertem a sua alma sobre o papel, que extraem dos ossos o som da
existência, perguntar-se-ão: onde está o direito sobre aquilo que não pode ser
possuído? Quem protegerá o indomável, o errante, o sublime que habita entre os
erros e os acasos?
Chamam-lhe revolução, progresso, um novo tempo. Mas, se o
tempo se esquece do humano, será ainda tempo ou apenas uma sucessão de
instantes mortos? Se a arte já não pede ao criador a experiência do mundo, se a
canção já não exige o fogo da vida, que lugar restará para aqueles que nasceram
para sentir?
Hoje, ainda há um homem com um violão a cantar para a lua.
Ainda há uma mulher a compor ao piano, como quem desenha saudades na neblina do
tempo. Mas até quando?
O perigo não está no advento da máquina. Está no dia em que
aceitarmos a perfeição sem alma, o brilho sem suor, a criação sem criador. No
dia em que confundirmos o reflexo com o real, o eco com a voz, a simulação com
a existência.
A música é a oração dos que não têm igreja, o grito dos que
não têm pátria, o refúgio dos que dançam na solidão. E se deixarmos que ela se
torne um produto sem nome, sem corpo, sem memória, o que restará de nós?
Este é o tempo de decidir se queremos ser autores ou apenas
ruído branco no imenso vazio das máquinas.
O silêncio das máquinas e a voz da alma© Expresso – Dino
D'Santiago