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terça-feira, 18 de março de 2025

O silêncio das máquinas e a voz da alma


                                                  Dino D'Santiago


O silêncio das máquinas e a voz da alma

 

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos.

Antes de partir para o Brasil, onde mergulharia numa imersão de composição e criação, entrelaçando novas canções nas águas desse Atlântico que sempre nos uniu, estive numa sessão de estúdio. A missão era simples: fazer arranjos vocais para um par de canções. Mas o que lá vivi ficou-me gravado como uma ferida invisível.

Apresentaram-me um programa de Inteligência Artificial capaz de tomar a minha voz – esse timbre único, moldado pelo tempo, pelas alegrias e cicatrizes – e vesti-la com outros rostos, outras histórias, outras almas. Em segundos, ouvi-me transformado, como se a minha essência tivesse sido arrancada e redesenhada sem consentimento. A minha voz poderia agora ser substituída por vozes femininas e masculinas de artistas imortais, alguns ainda vivos, outros que já partiram para o outro plano da vida. O sagrado era agora um jogo de combinações digitais.

Tratou-se apenas de uma demonstração - as "vozes" não passaram para a gravação final - mas, lembro-me ainda do arrepio na pele. Da estranheza que me atravessou o peito. Do desconforto que só mais tarde reconheci pelo nome: quase um estupro da alma humana. Porque, ali, naquele instante, percebi que nenhuma daquelas vozes, nem a minha, nem as dos que já tinham cantado antes de mim, teria qualquer direito sobre o próprio som. Tudo aquilo que um cantor deposita na sua voz — as dores, os sorrisos, os dias bons e os dias de luto — era agora reduzido a matéria-prima para a conveniência de um código.

E assim, ali mesmo, compreendi o verdadeiro perigo que espreita por trás das maravilhas tecnológicas.

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos. As canções não serão mais herdeiras da dor, do êxtase, da fome ou do fulgor, mas sim espectros digitais, vazios de cicatrizes, despidos de alma.

As mãos que outrora arrancavam melodias à madeira e ao metal, que moldavam harmonias como quem escava o próprio peito, serão substituídas por linhas de código. Um algoritmo aprenderá os nossos segredos, ouvirá as nossas preces e devolverá ao mundo uma versão refinada, matematicamente perfeita, mas desprovida do indizível – esse mistério que só o humano transporta.

As grandes fábricas invisíveis da modernidade devoram notas, versos, harmonias, mastigam o génio dos séculos passados e expelem sinfonias sintéticas, canções sem um rosto, sem um nome, sem um suspiro. E aqueles que ainda hoje vertem a sua alma sobre o papel, que extraem dos ossos o som da existência, perguntar-se-ão: onde está o direito sobre aquilo que não pode ser possuído? Quem protegerá o indomável, o errante, o sublime que habita entre os erros e os acasos?

Chamam-lhe revolução, progresso, um novo tempo. Mas, se o tempo se esquece do humano, será ainda tempo ou apenas uma sucessão de instantes mortos? Se a arte já não pede ao criador a experiência do mundo, se a canção já não exige o fogo da vida, que lugar restará para aqueles que nasceram para sentir?

Hoje, ainda há um homem com um violão a cantar para a lua. Ainda há uma mulher a compor ao piano, como quem desenha saudades na neblina do tempo. Mas até quando?

O perigo não está no advento da máquina. Está no dia em que aceitarmos a perfeição sem alma, o brilho sem suor, a criação sem criador. No dia em que confundirmos o reflexo com o real, o eco com a voz, a simulação com a existência.

A música é a oração dos que não têm igreja, o grito dos que não têm pátria, o refúgio dos que dançam na solidão. E se deixarmos que ela se torne um produto sem nome, sem corpo, sem memória, o que restará de nós?

Este é o tempo de decidir se queremos ser autores ou apenas ruído branco no imenso vazio das máquinas.

 

O silêncio das máquinas e a voz da alma© Expresso – Dino D'Santiago