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quarta-feira, 2 de abril de 2025

Alentejo


                                                     Foto: Google


Alentejo

A paz aqui é diferente.

É como se houvesse um silêncio por dentro das coisas.


domingo, 23 de março de 2025

Há plantas que rasgam o asfalto

 

                                              Foto: Google


Há plantas que rasgam o asfalto. Deixam para trás uma fissura como prova da sua força, do caminho percorrido, da agonia que sufoca antes da golfada de ar. Como o passar do tempo, a planta que fura o asfalto torna -se também ela asfalto. Fica a fissura para nos lembrar de que é possível dançar em contramão. É possível a terra ser o início e não o fim.

 

Nem todas as árvores morrem de pé – Luísa Sobral


terça-feira, 18 de março de 2025

O silêncio das máquinas e a voz da alma


                                                  Dino D'Santiago


O silêncio das máquinas e a voz da alma

 

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos.

Antes de partir para o Brasil, onde mergulharia numa imersão de composição e criação, entrelaçando novas canções nas águas desse Atlântico que sempre nos uniu, estive numa sessão de estúdio. A missão era simples: fazer arranjos vocais para um par de canções. Mas o que lá vivi ficou-me gravado como uma ferida invisível.

Apresentaram-me um programa de Inteligência Artificial capaz de tomar a minha voz – esse timbre único, moldado pelo tempo, pelas alegrias e cicatrizes – e vesti-la com outros rostos, outras histórias, outras almas. Em segundos, ouvi-me transformado, como se a minha essência tivesse sido arrancada e redesenhada sem consentimento. A minha voz poderia agora ser substituída por vozes femininas e masculinas de artistas imortais, alguns ainda vivos, outros que já partiram para o outro plano da vida. O sagrado era agora um jogo de combinações digitais.

Tratou-se apenas de uma demonstração - as "vozes" não passaram para a gravação final - mas, lembro-me ainda do arrepio na pele. Da estranheza que me atravessou o peito. Do desconforto que só mais tarde reconheci pelo nome: quase um estupro da alma humana. Porque, ali, naquele instante, percebi que nenhuma daquelas vozes, nem a minha, nem as dos que já tinham cantado antes de mim, teria qualquer direito sobre o próprio som. Tudo aquilo que um cantor deposita na sua voz — as dores, os sorrisos, os dias bons e os dias de luto — era agora reduzido a matéria-prima para a conveniência de um código.

E assim, ali mesmo, compreendi o verdadeiro perigo que espreita por trás das maravilhas tecnológicas.

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos. As canções não serão mais herdeiras da dor, do êxtase, da fome ou do fulgor, mas sim espectros digitais, vazios de cicatrizes, despidos de alma.

As mãos que outrora arrancavam melodias à madeira e ao metal, que moldavam harmonias como quem escava o próprio peito, serão substituídas por linhas de código. Um algoritmo aprenderá os nossos segredos, ouvirá as nossas preces e devolverá ao mundo uma versão refinada, matematicamente perfeita, mas desprovida do indizível – esse mistério que só o humano transporta.

As grandes fábricas invisíveis da modernidade devoram notas, versos, harmonias, mastigam o génio dos séculos passados e expelem sinfonias sintéticas, canções sem um rosto, sem um nome, sem um suspiro. E aqueles que ainda hoje vertem a sua alma sobre o papel, que extraem dos ossos o som da existência, perguntar-se-ão: onde está o direito sobre aquilo que não pode ser possuído? Quem protegerá o indomável, o errante, o sublime que habita entre os erros e os acasos?

Chamam-lhe revolução, progresso, um novo tempo. Mas, se o tempo se esquece do humano, será ainda tempo ou apenas uma sucessão de instantes mortos? Se a arte já não pede ao criador a experiência do mundo, se a canção já não exige o fogo da vida, que lugar restará para aqueles que nasceram para sentir?

Hoje, ainda há um homem com um violão a cantar para a lua. Ainda há uma mulher a compor ao piano, como quem desenha saudades na neblina do tempo. Mas até quando?

O perigo não está no advento da máquina. Está no dia em que aceitarmos a perfeição sem alma, o brilho sem suor, a criação sem criador. No dia em que confundirmos o reflexo com o real, o eco com a voz, a simulação com a existência.

A música é a oração dos que não têm igreja, o grito dos que não têm pátria, o refúgio dos que dançam na solidão. E se deixarmos que ela se torne um produto sem nome, sem corpo, sem memória, o que restará de nós?

Este é o tempo de decidir se queremos ser autores ou apenas ruído branco no imenso vazio das máquinas.

 

O silêncio das máquinas e a voz da alma© Expresso – Dino D'Santiago


domingo, 16 de março de 2025

Esperança: isto de sonhar bom para diante eu fi-lo perfeitamente


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Esperança:

isto de sonhar bom para diante

eu fi-lo perfeitamente,

Para diante de tudo foi bom

bom de verdade

bem feito de sonho

podia segui-lo como realidade

Esperança:

isto de sonhar bom para diante

eu sei-o de cor.

Até reparo que tenho só esperança

nada mais do que esperança

pura esperança

esperança verdadeira

que engana

e promete

e só promete.

Esperança:

pobre mãe louca

que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança

único que eu tenho

não me deixes sem nada

promete

engana

engano que seja

engana

não me deixes sozinho

esperança.

 

Almada Negreiros


sábado, 8 de março de 2025

Pequena cantiga à mulher

                                                       Foto: Google


Pequena cantiga à mulher

Onde uma tem

o cetim

a outra tem

a rudeza

Onde uma tem

a cantiga

a outra tem

a firmeza

Tomba o cabelo

nos ombros

o suor pela

barriga

Onde uma tem

a riqueza

a outra tem

a fadiga

Tapa a nudez

com as mãos

procura o pão

na gaveta

Onde uma tem

o vestígio

tem a outra

a pele seca

Enquanto desliza

o fato

pega a outra na

enxada

Enquanto dorme

na cama

a outra arranja-lhe

a casa

 

Maria Teresa Horta in Cronista não é recado, Guimarães Editores, 1967


domingo, 2 de março de 2025

Lágrima de preta


                                                 Foto: Google


Lágrima de preta

 

Encontrei uma preta

 que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.

Recolhi a lágrima

 com todo o cuidado

num tubo de ensaio

 bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

António Gedeão

Máquina de Fogo (1961)


sábado, 8 de fevereiro de 2025

PRECE


                                                      Foto: Google


PRECE

Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás — (o teu templo) — eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

[…]

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

Prosa Íntima e de Autoconhecimento. Fernando Pessoa.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Resistência

                                              Foto: Google



 

Resistência

Ninguém me castra a poesia

se debruça e me põe vendas

censura aquilo que escrevo

nem me assombra os poemas


Ninguém me paga os versos

nem amordaça as palavras

na invenção de voar

por entre o sonho e as letras


Ninguém me cala na sombra

deitando fogo aos meus livros

me ameaça no medo

ou me destrói e algema


Ninguém me aquieta a escrita

na criação de si mesma

nem assassina a musa

que dentro de mim se inventa

Maria Teresa Horta

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

No tempo em que havia ruas


                                             Foto: Google



No tempo 

em que havia ruas, 

ao fim da tarde 

minha mãe nos convocava: 

era a hora do regresso. 

E a rua entrava 

connosco em casa. 

Tanto o Tempo 

morava em nós 

que dispensávamos futuro. 

Recolhida em meu quarto, 

a cidade adormecia 

no mesmo embalo da nossa mãe. 

À entrada da cama, 

eu sacudia a areia dos sonhos 

e despertava vidas além. 

Entre casa e mundo 

nenhuma porta cabia: 

que fechadura encerra 

os dois lados do infinito? 

- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

A neve pôs uma toalha calada sobre tudo


                                              Foto: Google


A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.

Não se sente senão o que se passa dentro de casa.

Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.

Sinto um gozo de animal e vagamente penso,

E adormeço sem menos utilidade que todas as acções do mundo.

s.d.

“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

  - 104.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Lisboa


                                              Foto: Google


Lisboa

Cidade branca

semeada

de pedras


Cidade azul

semeada

de céu


Cidade negra

como um beco


Cidade desabitada

como um armazém


Cidade lilás

semeada

de jacarandás

Cidade dourada


semeada

de igrejas


Cidade prateada

semeada

de Tejo


Cidade que se degrada

cidade que acaba


Adília Lopes, in 'Poemas Novos'