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domingo, 23 de março de 2025

Há plantas que rasgam o asfalto

 

                                              Foto: Google


Há plantas que rasgam o asfalto. Deixam para trás uma fissura como prova da sua força, do caminho percorrido, da agonia que sufoca antes da golfada de ar. Como o passar do tempo, a planta que fura o asfalto torna -se também ela asfalto. Fica a fissura para nos lembrar de que é possível dançar em contramão. É possível a terra ser o início e não o fim.

 

Nem todas as árvores morrem de pé – Luísa Sobral


terça-feira, 18 de março de 2025

O silêncio das máquinas e a voz da alma


                                                  Dino D'Santiago


O silêncio das máquinas e a voz da alma

 

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos.

Antes de partir para o Brasil, onde mergulharia numa imersão de composição e criação, entrelaçando novas canções nas águas desse Atlântico que sempre nos uniu, estive numa sessão de estúdio. A missão era simples: fazer arranjos vocais para um par de canções. Mas o que lá vivi ficou-me gravado como uma ferida invisível.

Apresentaram-me um programa de Inteligência Artificial capaz de tomar a minha voz – esse timbre único, moldado pelo tempo, pelas alegrias e cicatrizes – e vesti-la com outros rostos, outras histórias, outras almas. Em segundos, ouvi-me transformado, como se a minha essência tivesse sido arrancada e redesenhada sem consentimento. A minha voz poderia agora ser substituída por vozes femininas e masculinas de artistas imortais, alguns ainda vivos, outros que já partiram para o outro plano da vida. O sagrado era agora um jogo de combinações digitais.

Tratou-se apenas de uma demonstração - as "vozes" não passaram para a gravação final - mas, lembro-me ainda do arrepio na pele. Da estranheza que me atravessou o peito. Do desconforto que só mais tarde reconheci pelo nome: quase um estupro da alma humana. Porque, ali, naquele instante, percebi que nenhuma daquelas vozes, nem a minha, nem as dos que já tinham cantado antes de mim, teria qualquer direito sobre o próprio som. Tudo aquilo que um cantor deposita na sua voz — as dores, os sorrisos, os dias bons e os dias de luto — era agora reduzido a matéria-prima para a conveniência de um código.

E assim, ali mesmo, compreendi o verdadeiro perigo que espreita por trás das maravilhas tecnológicas.

Um dia, acordaremos num mundo onde a música já não nascerá do sangue e do suor, mas de circuitos e cálculos. As canções não serão mais herdeiras da dor, do êxtase, da fome ou do fulgor, mas sim espectros digitais, vazios de cicatrizes, despidos de alma.

As mãos que outrora arrancavam melodias à madeira e ao metal, que moldavam harmonias como quem escava o próprio peito, serão substituídas por linhas de código. Um algoritmo aprenderá os nossos segredos, ouvirá as nossas preces e devolverá ao mundo uma versão refinada, matematicamente perfeita, mas desprovida do indizível – esse mistério que só o humano transporta.

As grandes fábricas invisíveis da modernidade devoram notas, versos, harmonias, mastigam o génio dos séculos passados e expelem sinfonias sintéticas, canções sem um rosto, sem um nome, sem um suspiro. E aqueles que ainda hoje vertem a sua alma sobre o papel, que extraem dos ossos o som da existência, perguntar-se-ão: onde está o direito sobre aquilo que não pode ser possuído? Quem protegerá o indomável, o errante, o sublime que habita entre os erros e os acasos?

Chamam-lhe revolução, progresso, um novo tempo. Mas, se o tempo se esquece do humano, será ainda tempo ou apenas uma sucessão de instantes mortos? Se a arte já não pede ao criador a experiência do mundo, se a canção já não exige o fogo da vida, que lugar restará para aqueles que nasceram para sentir?

Hoje, ainda há um homem com um violão a cantar para a lua. Ainda há uma mulher a compor ao piano, como quem desenha saudades na neblina do tempo. Mas até quando?

O perigo não está no advento da máquina. Está no dia em que aceitarmos a perfeição sem alma, o brilho sem suor, a criação sem criador. No dia em que confundirmos o reflexo com o real, o eco com a voz, a simulação com a existência.

A música é a oração dos que não têm igreja, o grito dos que não têm pátria, o refúgio dos que dançam na solidão. E se deixarmos que ela se torne um produto sem nome, sem corpo, sem memória, o que restará de nós?

Este é o tempo de decidir se queremos ser autores ou apenas ruído branco no imenso vazio das máquinas.

 

O silêncio das máquinas e a voz da alma© Expresso – Dino D'Santiago


domingo, 16 de março de 2025

Esperança: isto de sonhar bom para diante eu fi-lo perfeitamente


                                               Foto: Google


Esperança:

isto de sonhar bom para diante

eu fi-lo perfeitamente,

Para diante de tudo foi bom

bom de verdade

bem feito de sonho

podia segui-lo como realidade

Esperança:

isto de sonhar bom para diante

eu sei-o de cor.

Até reparo que tenho só esperança

nada mais do que esperança

pura esperança

esperança verdadeira

que engana

e promete

e só promete.

Esperança:

pobre mãe louca

que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança

único que eu tenho

não me deixes sem nada

promete

engana

engano que seja

engana

não me deixes sozinho

esperança.

 

Almada Negreiros


sábado, 8 de março de 2025

Pequena cantiga à mulher

                                                       Foto: Google


Pequena cantiga à mulher

Onde uma tem

o cetim

a outra tem

a rudeza

Onde uma tem

a cantiga

a outra tem

a firmeza

Tomba o cabelo

nos ombros

o suor pela

barriga

Onde uma tem

a riqueza

a outra tem

a fadiga

Tapa a nudez

com as mãos

procura o pão

na gaveta

Onde uma tem

o vestígio

tem a outra

a pele seca

Enquanto desliza

o fato

pega a outra na

enxada

Enquanto dorme

na cama

a outra arranja-lhe

a casa

 

Maria Teresa Horta in Cronista não é recado, Guimarães Editores, 1967


domingo, 2 de março de 2025

Lágrima de preta


                                                 Foto: Google


Lágrima de preta

 

Encontrei uma preta

 que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.

Recolhi a lágrima

 com todo o cuidado

num tubo de ensaio

 bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

António Gedeão

Máquina de Fogo (1961)


sábado, 8 de fevereiro de 2025

PRECE


                                                      Foto: Google


PRECE

Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás — (o teu templo) — eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

[…]

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

Prosa Íntima e de Autoconhecimento. Fernando Pessoa.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Resistência

                                              Foto: Google



 

Resistência

Ninguém me castra a poesia

se debruça e me põe vendas

censura aquilo que escrevo

nem me assombra os poemas


Ninguém me paga os versos

nem amordaça as palavras

na invenção de voar

por entre o sonho e as letras


Ninguém me cala na sombra

deitando fogo aos meus livros

me ameaça no medo

ou me destrói e algema


Ninguém me aquieta a escrita

na criação de si mesma

nem assassina a musa

que dentro de mim se inventa

Maria Teresa Horta