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domingo, 24 de setembro de 2023

Estamos a Construir uma Sociedade de Egoístas



                                            Foto: Google


Estamos a Construir uma Sociedade de Egoístas

Estamos a construir uma sociedade de egoístas. Se a ti te dizem que o que importa é o que compras, e segundo o que compras têm mais ou menos consideração por ti, então convertes-te num ser que não pensa senão em satisfazer os seus gostos, os seus desejos e nada mais. Não existe em nenhuma faculdade uma disciplina do egoísmo, mas não é preciso, é a própria experiência social que nos vai fazendo assim. Ao longo da História as igrejas e as catedrais eram os lugares onde se procurava um valor espiritual determinado. Agora os valores adquirem-se nos centros comerciais. São as catedrais do nosso tempo.

José Saramago, in 'El Mundo (2000)'


sábado, 16 de setembro de 2023

Devia morrer-se de outra maneira

                                              Foto: Google



 

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (veem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
 

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Memória dos sentidos




                                                Foto: Google



Memória dos sentidos

Olho para além dos sinais visíveis do horizonte.

Há um caos na trama dos dias apressados.

 

O pão há muito não tem o sabor da seara.

No verão o aroma dos figos e da urze

já não transpõe a ombreira da porta.

Nos muros caiados a violência do sol

atinge o olhar incauto dos que amam as sombras.

As vozes caladas das mulheres são um áspero bulício

contra as casas com frinchas nas janelas.

Nas mãos de toda a gente lateja um ritmo veloz

um impulso extraviado um gesto evasivo.

 

Instantes que perturbam a incerta imensidade do tempo.

 

Graça Pires – O improviso de viver