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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Loa

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Loa

É nesta mesma lareira,

E aquecido ao mesmo lume,

Que confesso a minha inveja

De mortal

Sem remissão

Por esse dom natural,

Ou divina condição,

De renascer cada ano,

Nu, inocente e humano

Como a fé te imaginou,

Menino Jesus igual

Ao do Natal

Que passou.


Miguel Torga, in 'Diários'

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Natal embrulhado

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Natal embrulhado.

 Assim o consumismo exagerado vai  "sequestrando o Natal".

 

sábado, 2 de dezembro de 2023

Há angústias que nem o Natal apazigua…

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Há angústias que nem o Natal apazigua…

Ser mãe e não ter pão; ser pai e não ter trabalho;

ser filho e não ter carinho; ser avó e avô e não ter um sorriso…

 

Não ter casa e viver só; não ter amor e viver rodeado por toda a gente;

[Não] ter família e não querer viver…

As luzes que nos trazem a alegria, fazem sombra sobre aqueles que estão tristes.

 

Hoje, o desafio para o nosso Natal é apagar as luzes…

Se cada um de nós contemplar a escuridão de quem sofre,

será capaz de amar a luz de uma forma mais ampla e bela.

José Tolentino de Mendonça

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Humanidade às Cegas


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Humanidade às Cegas

Tanto jornal, tanta rádio, tanta agência de informações, e nunca a humanidade viveu tão às cegas. Cada hora que passa é um enigma camuflado por mil explicações. A verdade, agora, é uma espécie de sombra da mentira. E como qualquer de nós procura quase sempre apenas o concreto, cada coisa que toca deixa-lhe nas mãos o simples negativo da sua realidade.

Miguel Torga, in "Diário (1948)"

domingo, 12 de novembro de 2023

Sono coloquial


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Sono coloquial

Da velhice

Sempre invejei

o adormecer

no meio da conversa.


Esse descer de pálpebra

não é nem idade nem cansaço.


Fazer da palavra um embalo

é o mais puro e apurado

 senso da poesia.

 

- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". Lisboa: Editorial Caminho, 2007.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Há perguntas que nos fazem medo



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Há perguntas que nos fazem medo, e talvez não devessem. Há interrogações que não nos pedem unicamente informações, mais sérias ou mais banais que sejam, que estamos educadamente dispostos a fornecer, mas aquela verdade concreta de nós que nos custa reconhecer.

Há indagações que não são apenas técnicas, dirigidas às nossas competências e aos nossos argumentos defensivos. Há questões dirigidas a um território interior feito de silêncios, adiamentos, fadigas, sonhos que se extinguiram sem deixar espaço a outros sonhos.

Vem à minha memória um pequeno fato que me foi contado por um amigo. Um destes dias, quando trazia da escola para casa a filha, ela, com os seus quatro anos, perguntou-lhe: «Papá, os grandes são felizes?».

Ele tomou a menina nos braços, e só conseguiu abraça-la com força, durante muito tempo. «Se respondo, desabo em lágrimas», dizia para si.

Ajuda-nos, Senhor, a colher a importância das perguntas que nos desestabilizam, em vez de nos tornarmos, com idade adulta, profissionais da fuga.

Cardeal D. José Tolentino Mendonça

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A minha sombra sou eu


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A minha sombra sou eu,

ela não me segue,

eu estou na minha sombra

e não vou em mim.

Sombra de mim que recebo a luz,

sombra atrelada ao que eu nasci,

distância imutável de minha sombra a mim,

toco-me e não me atinjo,

só sei do que seria

se de minha sombra chegasse a mim.

Passa-se tudo em seguir-me

e finjo que sou eu que sigo,

finjo que sou eu que vou

e não que me persigo.

Faço por confundir a minha sombra comigo:

estou sempre às portas da vida,

sempre lá, sempre às portas de mim!

 

José de Almada Negreiros


sábado, 14 de outubro de 2023

O ESPÍRITO DO OUTONO

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O ESPÍRITO DO OUTONO

 

Terei de falar do espírito do outono

agora que setembro

chegou ao fim. (Espírito

é palavra suspeita: não há

hipócrita que não se abrigue

à sua sombra.) Será

a embriaguez? O vento matinal

arrastando folhas

raparigas canções?

O sopro frio das estrelas?

Será a beleza,

o espírito do outono? Há um limite

para o homem, um limite

para suportar o peso do mundo.

Da beleza, da bárbara

orgulhosa beleza, quem sabe defender-se

sem medo do coração lhe rebentar?

 

Eugénio de Andrade -  "O Sal da Língua"

domingo, 8 de outubro de 2023

A Festa do Silêncio


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A Festa do Silêncio

Escuto na palavra a festa do silêncio.

Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.

As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.

Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.

É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.


Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,

o ar prolonga. A brancura é o caminho.

Surpresa e não surpresa: a simples respiração.

Relações, variações, nada mais. Nada se cria.

Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.


Nada é inacessível no silêncio ou no poema.

É aqui a abóbada transparente, o vento principia.

No centro do dia há uma fonte de água clara.

Se digo árvore a árvore em mim respira.

Vivo na delícia nua da inocência aberta.


António Ramos Rosa, in "Volante Verde"


domingo, 24 de setembro de 2023

Estamos a Construir uma Sociedade de Egoístas



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Estamos a Construir uma Sociedade de Egoístas

Estamos a construir uma sociedade de egoístas. Se a ti te dizem que o que importa é o que compras, e segundo o que compras têm mais ou menos consideração por ti, então convertes-te num ser que não pensa senão em satisfazer os seus gostos, os seus desejos e nada mais. Não existe em nenhuma faculdade uma disciplina do egoísmo, mas não é preciso, é a própria experiência social que nos vai fazendo assim. Ao longo da História as igrejas e as catedrais eram os lugares onde se procurava um valor espiritual determinado. Agora os valores adquirem-se nos centros comerciais. São as catedrais do nosso tempo.

José Saramago, in 'El Mundo (2000)'


sábado, 16 de setembro de 2023

Devia morrer-se de outra maneira

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Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (veem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
 

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Memória dos sentidos




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Memória dos sentidos

Olho para além dos sinais visíveis do horizonte.

Há um caos na trama dos dias apressados.

 

O pão há muito não tem o sabor da seara.

No verão o aroma dos figos e da urze

já não transpõe a ombreira da porta.

Nos muros caiados a violência do sol

atinge o olhar incauto dos que amam as sombras.

As vozes caladas das mulheres são um áspero bulício

contra as casas com frinchas nas janelas.

Nas mãos de toda a gente lateja um ritmo veloz

um impulso extraviado um gesto evasivo.

 

Instantes que perturbam a incerta imensidade do tempo.

 

Graça Pires – O improviso de viver


quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Os Meus Pensamentos são Todos Sensações

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Os Meus Pensamentos são Todos Sensações

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema IX"

Heterónimo de Fernando Pessoa

domingo, 13 de agosto de 2023

AS PALAVRAS


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AS PALAVRAS

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos «slogans» publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

José Saramago

domingo, 30 de julho de 2023

Não sabias: imagina…

 

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Não sabias: imagina…

Deixa falar o mestre, e devaneia…

A velhice é que sabe, e apenas sabe

Que o mar não cabe

Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!

Inventa um alfabeto

De ilusões…

Um á-bê-cê secreto

Que soletres à margem das lições…

Voa pela janela

De encontro a qualquer sol que te sorri!

Asas? Não são precisas:

Vais ao colo das brisas,

Aias da fantasia…

 

Miguel Torga, Diário IX


sexta-feira, 21 de julho de 2023

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa

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A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…

Quando se vê, já é 6ª-feira…

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado…

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

 

Mário Quintana (1906 — 1994) foi um importante poeta brasileiro, nascido do Rio Grande do Sul, que conquistou o amor do público nacional com as suas composições curtas e cheias de sabedoria.

Este é um dos seus poemas mais populares e carrega uma grande lição de vida: muitas vezes, vamos adiando aquilo que queremos ou precisamos fazer, porque achamos que depois teremos mais disponibilidade.

No entanto, o sujeito alerta os leitores para o modo como o tempo passa rapidamente por nós e não espera por ninguém. Por isso, é necessário aproveitarmos e valorizarmos cada segundo em que estamos vivos.


sábado, 1 de julho de 2023

Amostra sem valor


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Amostra sem valor

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.

Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:

com ele se entretém

e se julga intangível.

 

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,

sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,

que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,

não pesa num total que tende para infinito.

 

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida

ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,

nesta insignificância, gratuita e desvalida,

Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

 

 António GEDEÃO (1968:p.309),  Poesias Completas, 2 ed. 


terça-feira, 13 de junho de 2023

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo


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Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

 

29-3-1930

Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

  - 38.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Dói-me a vida, doutor

 


 




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“- Dói-te alguma coisa?

- Dói-me a vida, doutor (…)

- E o que fazes quando te assaltam essas dores?

- O que de melhor sei fazer, excelência.

- E o que é?

- É sonhar.”


MIA COUTO, in “O fio das missangas”, Ed. Caminho, 2004


terça-feira, 16 de maio de 2023

A Árvore, a Estrela e a Pequena Mão


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A Árvore, a Estrela e a Pequena Mão

A pequena mão desenha a árvore

onde uma estrela se aninha para dormir.

Que dia será o de amanhã

no meio dos escombros onde o eco da súplica

enlouquece os cães famintos?

Quadro trágico para uma noite assim.

A pequena mão pega na borracha

e tenta apagar toda a dor do mundo

e acender com um novo traço

a claridade que resgata a alma.

A estrela acorda numa copa alta

e segue o caminho do que sabe

até encontrar a pequena mão

que tudo reinventa à medida do que somos.

Quando o encontro acontece

já não é noite nem dia, tempo infinito,

mas apenas um lugar onde o choro das crianças

de súbito se transforma em cântico.


A pequena mão desenha tudo

o que falta desenhar para o sonho fazer sentido.

É uma mão frágil mas firme, apenas sábia,

e quando abre o livro azul das manhãs

é sempre para escrever as palavras

que o estrondo abafou nas cidades feridas.

A pequena mão desenha uma árvore,

uma estrela e uma mãe aflita.

Depois desenha uma linha de horizonte,

uma constelação e uma pequena arca.

Um traço basta para criar a luz.

Depois tudo é mistério e júbilo.

Que ao menos esta noite ninguém se esqueça

da árvore, da estrela, da lenda

e da magia da pequena mão afagando a vida.


José Jorge Letria, in 'Antologia Poética'


domingo, 30 de abril de 2023

Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam

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Poema das coisas

Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária.

Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o desespero as busque.

Abre-se a porta e o próprio ar nos fala.
As cortinas de rede, exatamente aquelas,
a cadeira onde a memória está sentada,
a mesa, o copo, a chávena, o relógio,
o móvel onde alguém permanece encostado
sem volume e sem tempo,
nós próprios, quando os olhos indignados
nas pálpebras se encobrem.

Põe-se a pedra na mão, e a pedra pesa,
pesa connosco, forma um corpo inteiro

Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma,
conhece a pedra, entende-lhe o feitio,
sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.
Abre-se a mão, e a mesma pedra avulta.

Se fosse o amor dos homens
quando se abrisse a mão já lá não estava.

 

António Gedeão

domingo, 23 de abril de 2023

A Vida deve Ser um Sonho que se Recusa a Confrontos

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A Vida deve Ser um Sonho que se Recusa a Confrontos

Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das vir­tudes - deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.
Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo.
Disse Horácio, falando do varão justo, que ficaria impávido ainda que em torno dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impávidos - não porque sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para elas somos.
A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'

quarta-feira, 12 de abril de 2023

O peso da luz com que nos vemos

 

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O Espelho

Esse que em mim envelhece

assomou ao espelho

a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,

fingindo desconhecer a imagem,

deixaram-me a sós, perplexo,

com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz

com que nos vemos.

MIA COUTO


quinta-feira, 23 de março de 2023

Olhos postos na terra


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Olhos postos na terra, tu virás

no ritmo da própria primavera,

e como as flores e os animais

abrirás nas mãos de quem te espera.

 

Eugénio de Andrade, As Mãos e Os Frutos, Limiar, p. 41

quinta-feira, 16 de março de 2023

Gente que não necessita de uma única palavra que brilhe.

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                         Gente que não necessita

                         de uma única palavra que brilhe.

                        Gente que ri confiante e falsa 

                        em plena noite de luto. O frio sobre os telhados

                        de quem ainda os possui.

 

                       Gente que não é planeta

                       e move-se em torno de uma estrela

                       de pontas negras e insidiosas. Porém, cintilante

                       no céu onde pairam apenas parasitas.


 

                       Gente que não necessita de poemas,

                       bárbaros ou não,

                       o poema, uma espada de balão

                       esgrimida pelo palhaço triste,

                       desempregado.

 

                       Gente mínima no assalto aos pináculos

                       da presunção,

                       os pés sujos de lodo,

                       o sangue inocente nas mãos.

 

                       Gente que… 

                       Gente?...

                       Em volta, viçosas ervas daninhas

                       bailando como soturnas plumas

                       na floresta de todos os enganos.

 

                     Lídia Borges – Blog Searas de Versos

sexta-feira, 3 de março de 2023

No silêncio dos olhos

 

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                        No silêncio dos olhos
                        Em que língua se diz, em que nação,
                        Em que outra humanidade se aprendeu
                        A palavra que ordene a confusão
                       Que neste remoinho se teceu?
                      Que murmúrio de vento, que dourados
                      Cantos de ave pousada em altos ramos
                      Dirão, em som, as coisas que, calados,
                      No silêncio dos olhos confessamos?


– José Saramago, em “Os poemas possíveis”. 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

A minha escrita foi ganhando rugas com idade


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A minha escrita foi ganhando rugas com  idade

Ao longo da noite vou lendo as minhas velhas cartas. Vejo como a minha letra mudou e penso: a caligrafia é parte do corpo, a minha escrita foi ganhando rugas com a idade."

 

Reflexão do personagem Adriano Santiago

No livro O Mapeador de Ausências, de Mia Couto


sábado, 28 de janeiro de 2023

Ausência


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Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

 Tudo aquilo que perdemos e do qual sentimos saudade está eternizado em nós e, por isso, permanece connosco.

Carlos Drumond de Andrade


segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Ver Claro


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Ver Claro

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

Eugénio de Andrade


domingo, 15 de janeiro de 2023

A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos

                                                                                     
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A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos.

No outro, oiço-lhe a música;
neste, sinto-lhe as vibrações.

Miguel Torga


 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

O Egoísmo Pessoal Tapa Todos os Horizontes

    

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O Egoísmo Pessoal Tapa Todos os Horizontes

O mal e o remédio estão em nós. A mesma espécie humana que agora nos indigna, indignou-se antes e indignar-se-á amanhã. Agora vivemos um tempo em que o egoísmo pessoal tapa todos os horizontes. Perdeu-se o sentido da solidariedade, o sentido cívico, que não deve confundir-se nunca com a caridade. É um tempo escuro, mas chegará, certamente, outra geração mais autêntica. Talvez o homem não tenha remédio, não tenhamos progredido muito em bondade em milhares e milhares de anos sobre a Terra. Talvez estejamos a percorrer um longo e interminável caminho que nos leva ao ser humano. Talvez, não sei onde nem quando, cheguemos a ser aquilo que temos de ser. Quando metade do mundo morre de fome e a outra metade não faz nada...alguma coisa não funciona. Talvez um dia!

José Saramago, in 'La Verdade (1994)'