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sábado, 16 de março de 2024

"As disjunções perfeitas"


                                            Foto: Disjunção espacial- Maria Lynch


"As disjunções perfeitas"

O homem que dizem na minha rua

ter ligeira disfunção mental

disse-me hoje de manhã «bom dia»,

com um sorriso rasgado de malmequer,

ou de papoila fresca, ou plátano fresco

(ou qualquer coisa bela do mundo vegetal)

 

E, como eu comentava sobre o dia

(azul de primavera), acrescentou:

«Deus é assim. É pródigo,»

 

ah! infinito tudo, admirável mundo

que, enfim,

de lado a lado se ilumina:

de som, de fino pólen, de tão puro

neurónio

em disjunção divina

 

Ana Luísa Amaral (2022:p.245), O Olhar Diagonal das Coisas.


quarta-feira, 6 de março de 2024

Deus na escuridão


                                              Foto: Google



Deus na escuridão

 

As mães libertam seus filhos e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas e passarão todo tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.

Irão buscá-los eternamente.

Sabem amar acima de qualquer defeito, de qualquer falha, com cada vez mais saudades.

As lembranças dos filhos são sempre nascentes e não haverão jamais de terminar.

Este amor é sempre um sentimento que se exerce na escuridão.

 

Deus na EscuridãoValter Hugo Mãe – Porto Editora


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Ampliar o olhar


                                                    Foto: Google


Ampliar o olhar

Vivemos dobrados sobre o restrito, aprisionados a um quotidiano utilitarista e estreito em que a vida perde a sua respiração.

Há uma leveza que precisamos aprender:

Uma transparência que dilata a alma e nos mantém ligados à chama pequenina da esperança

 

O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas  - José  Tolentino de Mendonça


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Só o silencio é liso


                                              Foto: Google


Só o silencio é liso

Por aqui a escrita é um sol encoberto

alguns resíduos de luz dispersos ao acaso

 

os pássaros nas linhas do esquecimento

perdem-se do canto na mão que escreve

 

vocábulos de orvalho em lago de limos.

São peixes escorregadios 

que não deixam de se debater

 

em tempo de guerra toda a palavra é curva

só o silêncio é liso 

e grita.

 

 

Lídia Borges - blog Seara de versos


sábado, 3 de fevereiro de 2024

Alguma coisa tem de haver para explicar a dor de se ficar calado


                                                 Foto: Google

Alguma coisa tem de haver para explicar a dor de se ficar calado, na condição de mortos-vivos, enquanto à nossa volta um mundo por ordenar declara urgência de palavras, aquelas que, constituídas da matéria do próprio silêncio, servem para declarar guerra à erva daninha da indiferença.

[…]

Anda por aí muito silêncio a transformar palavras em medo. Andam muitas bocas com coisas por dizer e, no entanto, amordaçadas pela indiferença, que por esta altura já cresceu tanto que se tornou difícil de romper.



(Ana Paula Tavares (2.ª edição, 2022: p. 53), O sangue da Buganvília)


sábado, 27 de janeiro de 2024

A solidão é a condição inevitável do homem

                                              Foto: Google


  


 A solidão é a condição inevitável do homem

 

Quando estou só reconheço

se por momentos me esqueço

que existo entre outros que são

como eu sós, salvo que estão

alheados desde o começo.

 

E se sinto quanto estou

verdadeiramente só,

sinto-me livre mas triste.

Vou livre para onde vou,

mas onde vou nada existe.

 

Creio contudo que a vida

devidamente entendida

é toda assim, toda assim.

Por isso passo por mim

como por coisa esquecida.

9-8-1931

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

  - 67.


quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Lição de caligrafia

                                                        Foto: Google
 


Lição de caligrafia

Começo por confessar um segredo:

A escrita é um rio. As vogais são a  água. As consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.

Repara, filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço entre as palavras é um suspiro. Um parágrafo é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos.

Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde estendes os panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.

Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte, já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as frases.

Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.

Lembra-te filha: há vários modos de ser analfabeto, um deles é esquecer que o papel já foi árvore, que a tinta e o lápis já foram suor de gente anónima. Outro modo de ser analfabeto é desconhecermos a nossa própria historia.

 

Mia Couto – Compêndio para desenterrar nuvens- Ed. Caminho