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sábado, 27 de janeiro de 2024

A solidão é a condição inevitável do homem

                                              Foto: Google


  


 A solidão é a condição inevitável do homem

 

Quando estou só reconheço

se por momentos me esqueço

que existo entre outros que são

como eu sós, salvo que estão

alheados desde o começo.

 

E se sinto quanto estou

verdadeiramente só,

sinto-me livre mas triste.

Vou livre para onde vou,

mas onde vou nada existe.

 

Creio contudo que a vida

devidamente entendida

é toda assim, toda assim.

Por isso passo por mim

como por coisa esquecida.

9-8-1931

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

  - 67.


quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Lição de caligrafia

                                                        Foto: Google
 


Lição de caligrafia

Começo por confessar um segredo:

A escrita é um rio. As vogais são a  água. As consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.

Repara, filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço entre as palavras é um suspiro. Um parágrafo é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos.

Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde estendes os panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.

Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte, já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as frases.

Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.

Lembra-te filha: há vários modos de ser analfabeto, um deles é esquecer que o papel já foi árvore, que a tinta e o lápis já foram suor de gente anónima. Outro modo de ser analfabeto é desconhecermos a nossa própria historia.

 

Mia Couto – Compêndio para desenterrar nuvens- Ed. Caminho


sábado, 13 de janeiro de 2024

A Intolerância é uma Brutal Realidade

                                                 Foto: Google




 

A Intolerância é uma Brutal Realidade

Nós vivemos num tempo que se caracteriza pela irracionalidade dos comportamentos gerais, e pôr aqui um pouco de senso comum, no sentido de que, acima de tudo, o que há a proteger é a vida  é quase impossível.

E mais se esse ser humano enfrenta outro ser humano porque crê num outro deus, ou porque, ao ter uma outra tradição, vê o outro como um inimigo. A partir do momento em que vemos o próximo como inimigo, a guerra está declarada. 

A intolerância não é uma tendência, é uma brutal realidade.

José Saramago, in 'Expresso (2008)'

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Não tenhas medo, ouve

                                              Foto; Google



 

Não tenhas medo, ouve

Não tenhas medo, ouve:

É um poema.

Um misto de oração e de feitiço…

Sem qualquer compromisso,

Ouve-o atentamente,

De coração lavado.

Poderás decorá-lo

E rezá-lo

Ao deitar,

Ao levantar,

Ou nas restantes horas de tristeza.

Na segura certeza

De que mal não te faz.

E pode acontecer que te dê paz…

Miguel Torga in “Diário XIII”