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quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Lição de caligrafia

                                                        Foto: Google
 


Lição de caligrafia

Começo por confessar um segredo:

A escrita é um rio. As vogais são a  água. As consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.

Repara, filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço entre as palavras é um suspiro. Um parágrafo é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos.

Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde estendes os panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.

Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte, já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as frases.

Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.

Lembra-te filha: há vários modos de ser analfabeto, um deles é esquecer que o papel já foi árvore, que a tinta e o lápis já foram suor de gente anónima. Outro modo de ser analfabeto é desconhecermos a nossa própria historia.

 

Mia Couto – Compêndio para desenterrar nuvens- Ed. Caminho